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O golpe vende pátria de 1964: celebrar o quê?, por Roberto Bitencourt da Silva

O golpe vende pátria de 1964: celebrar o quê?

Por Roberto Bitencourt da Silva

Um general fez apelos públicos à celebração do golpe de Estado de 1964. O governo federal, dias antes, havia ganhado na Justiça o “direito” de comemorar o tenebroso evento do passado. Uma verdadeira disputa pela capacidade de moldar o passado e, com efeito, de instrumentalizá-lo no enfrentamento das metas e dos desafios políticos do presente, é moeda corrente nas batalhas pela memória coletiva.

A respeito, cumpre observar que ao menos quatro objetivos e temas centrais orientaram as ações do governo do destituído e exilado presidente João Goulart. Trata-se de propósitos gestados pelas ousadas lutas de sujeitos individuais e coletivos – líderes políticos, partidos de esquerda, sindicatos, entidades estudantis etc. – que possuíam estreita interlocução com Jango, a ele conferindo legitimidade no trato da pauta social distributivista e economicamente socializante e reformista, nacionalista e anti-imperialista, pauta que era então influente na opinião coletiva e predominava na agenda pública do Brasil. Seus tópicos principais foram:

1. A disciplina do capital estrangeiro, de modo a diminuir bastante a transferência de riquezas do Brasil para os poderosos países capitalistas que sediavam as grandes corporações empresariais atuantes na economia brasileira. Uma industrialização sob controle nacional, com capital estatal e privado doméstico, era o alvo, promovendo e internalizando tecnologia autóctone. Controlar e reter os excedentes gerados no país, para capitalizar a economia nacional, era um objetivo estratégico.

2. Adotar políticas de reforma agrária, de modo a viabilizar a melhoria das condições de vida dos trabalhadores rurais, dar-lhes acesso à terra, inibir a emigração desenfreada para as cidades, conter o processo de favelização, ampliar o mercado consumidor brasileiro, reduzir os preços dos alimentos no meio urbano e diminuir bastante o poder dos latifundiários sobre o país e, portanto, senão quebrar, ao menos atenuar sobremaneira o poder político e econômico dos especuladores de terra e dos exportadores do “agronegócio”.

3. Incrementar e alargar a participação política popular dos trabalhadores organizados em sindicatos e dos estudantes, especialmente universitários, nos processos de decisão sobre os rumos políticos e econômicos nacionais. A dimensão participativa da democracia foi ativada como nunca se viu no Brasil. Nem antes, nem depois.

4. Manter e reforçar uma política externa independente, que visava promover o princípio básico do direito internacional da autodeterminação dos povos, dar margem de liberdade e escolha ao país nas suas interações econômicas e diplomáticas mundiais, também evitar o isolamento da radiosa Cuba socialista na América Latina, além de almejar o combate a qualquer fiapo de subjugação ao imperialismo, sobretudo estadunidense.

Salto no tempo. Os sujeitos ora instalados no governo federal e em demais círculos de poder no país, vestindo fardas ou à paisana, que preconizam celebrar o golpe de 1964, ou o celebram silenciosamente, na verdade defendem iniciativas que caminha(ra)m na absoluta contramão do projeto de nação defendido pelo golpeado governo Goulart.

Na disputa pela memória, os atores individuais e coletivos gostosamente integrados no condomínio do poder, ora saúdam o “progresso material”, ora a “segurança” pretensamente oferecida pela ditadura. Alguns mais pérfidos exaltam torturadores, como é o caso do genocida presidente da República. Entre setores progressistas, comumente é a recordação dos ataques às liberdades e a violação dos direitos humanos as questões mais salientadas.

Todavia, as causas fundamentais para a ocorrência do golpe e da implantação da ditadura, esquematicamente destacadas acima, tendem a ser colocadas no esquecimento. Elas conformavam um grandioso projeto de nação que foi duramente abortado. E que precisa ser retomado, atualizado e radicalizado no que couber.

Hoje mal temos indústria, o desemprego campeia e o subemprego crônico só amplia, a economia brasileira se insere de maneira cada vez mais subordinada na divisão internacional do trabalho, a desnacionalização econômica é gigantesca e não cessa, a dependência tecnológica é intensificada e deveria ser motivo de grande preocupação pública, os trabalhadores são tratados pior do que bicho, em regimes de trabalho que flertam com a escravidão e o desapossamento quase completo de direitos e garantias.

A fome é aviltante e crescente e o país virou um repugnante vassalo dos Estados Unidos. Nem a dimensão representativa e eleitoral da democracia é respeitada. Os reacionários inimigos da Pátria celebram e promovem esse lamentável estado de coisas que, em boa medida, corresponde a um deplorável e estratégico legado da ditadura vende pátria instaurada em 1964.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.

Redação

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