O legado de 50 anos da Revolução dos Cravos que o partido Chega quer enterrar em Portugal

Em entrevista exclusiva ao GGN [assista abaixo], o historiador e professor Valério Arcary destrincha a Revolução dos Cravos em Portugal, um marco histórico que abalou as estruturas do regime autoritário que governava o país. Arcary, filho de uma funcionária do Itamaraty em Portugal e que era parte do movimento secundarista no decorrer dos acontecimentos, destacou que esta não foi uma revolução não-violenta de todo. 

Há 50 anos, a Revolução dos Cravos surgiu com o levantamento de civis e militares de baixa patente do Movimento as Forças Armadas (MFA) que derrubou a ditadura de Antonio de Oliveira Salazar, instaurada em 1933. Desde então, o regime democrático foi reestabelecido até os dias atuais.

“No dia da insurreição, o regime cai de podre, mas durante 13 anos morreram dezenas de milhares nas guerras africanas. E, ao mesmo tempo, Portugal estava condenado a um atraso econômico que contrastava com a prosperidade econômica dos 30 anos de ouro do crescimento europeu do pós-guerra”, afirmou Arcary. 

O primeiro ponto abordado foi a insurreição da oficialidade média, um movimento que desafiou as estruturas de poder estabelecidas. Arcary ressaltou como a tentativa do regime ditatorial salazarista de impedir a libertação das então colônias africanas foi determinante por 13 anos. Dessa forma, o país precisava de cada vez mais membros para o exército, com seus quatro anos de serviço militar obrigatório, limitando o acesso ao ensino superior. Essa experiência militar criou um ambiente propício para o questionamento das autoridades e alimentou o descontentamento com o regime.

Muitos foram aqueles que tentaram artimanhas para evitar ser mandados para reprimir as revoluções anticoloniais em locais como Angola e Moçambique. O escritor português José Saramago contava que, para escapar do inevitável alistamento militar, deixou que todos os jovens furassem a fila. Assim, quando chegou sua vez, já haviam acabado os uniformes.  

A Revolução dos Cravos, portanto, representou não apenas uma mudança de regime, mas também um movimento contra as opressões coloniais e sociais.

Outro fator crucial foi o atraso econômico que assolava Portugal. Enquanto o país enfrentava dificuldades econômicas, contrastando com a prosperidade de outros países europeus durante os “30 anos de ouro” do pós-guerra, o descontentamento popular crescia.

Arcary destacou a atmosfera de obscurantismo semi-medieval que caracterizava a ditadura, com uma rede de informantes da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) que mantinha a população sufocada por gerações.

“Era um regime de terror apoiado na Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE)”, completou Arcary, destacando a importância do aparato, pois “embora tivesse somente 2 mil funcionários altamente profissionais, tinham informantes e colaboradores [entre 20 e 200 mil]”.

O nome “Revolução dos Cravos” surgiu de um episódio simbólico, onde a entrega de cravos vermelhos pelos floristas à coluna militar em marcha em direção aos ministérios marcou o início de uma nova era para Portugal.

Por 18 meses, houve um período de “embriaguez social e política que deixa o mundo completamente fascinado: o que está acontecendo em Portugal?”, ressalta o historiador.

Milhões de pessoas trabalhadoras e jovens em mobilizações constantes e a expulsão dos informantes da PIDE permitiram o florescimento dos movimentos contra as opressões e organizam-se os estudantes africanos quanto à demanda de descolonização. Era essa uma dinâmica viva de democracia direta e poder popular. 

Porém, o período pós-revolucionário não foi isento de desafios. Houve tentativas de golpe de estado, nacionalizações de bancos e uma dinâmica complexa de democracia direta e poder popular. A entrevista também abordou o golpe militar de 25 de novembro, que interrompeu a trajetória da revolução popular e abriu caminho para um novo cenário político.

Arcary destacou como a história política de Portugal desde então tem sido marcada por períodos de instabilidade, como a crise econômica internacional de 2007 e a ascensão de movimentos de extrema-direita.

“Desde então, a economia europeia entrou em uma estagnação de longa duração e Portugal”, relembra o historiador ao mencionar que o país ibérico foi governado pela direita até 2015, passando por uma reforma previdenciária e ajuste fiscal, com efeitos devastadores e que empobreceu a população. Assim, o desespero social leva ao fracionamento da sociedade, na visão de Arcary.

Sobre o presente político português, Arcary destacou os desafios enfrentados pelo país no contexto da crise econômica global e das mudanças políticas recentes.

“Há uma parcela da classe dominante portuguesa que está apoiando o Chega, o candidato André Ventura, e que sonha com um projeto a Milei, ou seja, um projeto duríssimo de confronto com o que podemos chamar de direitos sociais que foram conquistados com o 25 de abril”, concluiu.

Assista abaixo:

Dolores Guerra

Dolores Guerra é formada em Letras pela USP, foi professora de idiomas e tradutora-intérprete entre Brasil e México por 10 anos, e atualmente transita de carreira, estudando Jornalismo em São Paulo. Colabora com veículos especializados em geopolítica, e é estagiária do Jornal GGN desde março de 2014.

Dolores Guerra

Dolores Guerra é formada em Letras pela USP, foi professora de idiomas e tradutora-intérprete entre Brasil e México por 10 anos, e atualmente transita de carreira, estudando Jornalismo em São Paulo. Colabora com veículos especializados em geopolítica, e é estagiária do Jornal GGN desde março de 2014.

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