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Os fantásticos números do Fantástico

Affonso Romero – Blog Ouro de Tolo

Segundo o programa global que encerra os nossos domingos com um quê de “não-quero-mais”, o Brasil atingiu um nível de desemprego assustador de 7,6%, depois de oito meses seguidos de queda do número de empregos. Ainda na mesma matéria, fomos informados de que também não está fácil para quem mantém seu emprego, porque “quase 50% da população brasileira” estão fazendo dupla jornada de trabalho para fechar as contas de fim de mês. Guarde estes números, falaremos deles logo adiante.

Segunda-feira, alertado sobre estas dificuldades, acordo animadíssimo para o trabalho, afinal, na minha idade, do jeito que as coisas estão, é melhor eu me manter onde estou. De tão animado, e de tantas que eram as minhas atividades, consegui almoçar somente às 16h.

E ainda vêm me dizer que a fome acabou no Brasil. Ah, a minha não. Às quatro da tarde, ela estava de matar. Permiti-me um exagero e desejei o novo e gigantesco combo de (hamburger de) picanha do Burger King. Havia um casal na minha frente na fila, um caixa com atendente, um caixa vazio. Aguardei.

O casal foi atendido e, então, percebi que eram velhos conhecidos da moça do caixa. Íntimos, talvez. Mais de cinco minutos depois, eu também quase era íntimo de todos por ali. Perdi um pouco da atenção no assunto deles. É que um jovem de gravata, uniforme reluzente e mais formal, com toda cara de gerente, foi até o caixa que estava fechado. Animei-me. Já ia fazendo o pedido, mas o homem me ignorou, olhou para a máquina, olhou em volta, chamou um outro atendente, ambos olharam para a praça de alimentação enquanto papeavam, mas não olharam para mim. Sim, o caixa da conversa era minha única opção.

Chegou finalmente minha vez e eu, de pronto, emendei o boa tarde no pedido: combo de picanha e…

– Senhor, hoje não temos carne de picanha. Isso, ela disse “carde de picanha”, assim, como se picanha fosse um bicho. Eu olhei para o letreiro, buscando uma alternativa, ela não se deu por vencida.

– Senhor, o senhor vai pagar com cartão?

– Sim, por que? Não está funcionando o sistema, não aceitam cartão?

– Não, não, é uma sorte que seja cartão. O sistema hoje só está aceitando cartão.

Fiquei pensando uns instantes como, diabos, um sistema teria deixado de aceitar dinheiro vivo. Refleti se eu deveria mesmo comer numa lanchonete cujo sistema – e as pessoas – são burras a ponto de terem dificuldade burocrática com uma note de dinheiro real. Pedi desculpas, fui ao Spoletto comer uma massinha.

Vocês devem estar lembrados do esquete do Porta dos Fundos sobre o Spoletto, com o atendente apressando o cliente? Eu não correria este risco às 16h, com a praça de alimentação vazia, corria? Caminhei até o balcão, durante todo o caminho ninguém se aproximou de lá. Cheguei, os atendentes com cara de quem não recebia um cliente há pelo menos uma hora. Olhei para o cardápio, a moça pegou a frigideira e já perguntou o pedido.

– Eu estou pensando ainda, talvez aqui este ravióli…

– Qual recheio, senhor?

Como ela escolheu por mim que seria o ravióli mesmo, enquanto eu pensava no recheio ela já me perguntava se era com azeite, manteiga ou gratinado. Foi a senha para começar aquela maratona de acompanhamentos. Maratona não, porque maratona o corredor faz num ritmo mais leve. Era uma série de tiros de 100 metros rasos, um para cada ingrediente.

– Faltam dois, senhor. Falta um senhor, o último qual é? Escolhi, aliviado. Mas caí direto nas garras do menino exótico do caixa. No caso da equipe deles, o revezamento era permitido.

– Campeão, o que vamos beber?

– Campeão? Vamos? Pensei, mas não falei. Para me livrar logo daquilo, dei logo a lista, com refrigerante e sobremesa.

– Campeão, e as tiras de frango? Vai nas tiras de frango, né, campeão?

Eu pensei em dizer que trocaria as tiras de frango por um troféu, uma medalha, qualquer coisa que certificasse que eu havia ganho uma competição esportiva, porque, campeão…

– Não, obrigado, sem frango.

– Mas, campeão, você já fez o pedido completo, só faltam as tiras de frango para ganhar o prato? Olhei em volta. Que prato seria? Há uma promoção, você faz determinado pedido, que inclui tiras de frango, e ganha de presente, inteiramente “de grátis”, um prato colorido de louça, com cores berrantes e temas italianos. Eu havia gabaritado sem querer, só me faltavam as tiras de frango.

– Olha, eu não quero frango não. Mas me diz aí quanto seria este complemento de frango?

– R$3,90, campeão! Não, não, peraí. Fulana, o frango, é quatro, R$ 4,50, é isso. É, campeão, R$ 4,50.

Eu percebi que não ficava nada bem para um campeão deixar passar a oportunidade de comprar um gracioso prato com uma cor berrante e tema italiano por menos de cinco reais.

– Amigo, faz o seguinte: bate aí no pedido as tiras de frango, porque eu quero o prato. Mas não precisa servir o frango não. Eu quero só o prato, sem tiras de frango, ok?

Ele me falou o total, pegou o cartão. A moça entregou a bandeja, sem talheres. Eu pedi. O moço do caixa, gritou de volta para ela.

– Fulana, faltam os talheres. E o frango do campeão.

– Mas ele não quer o frango.

– Isso, meu amigo, o campeão aqui não quer frango. Sem frango.

– E o prato, qual a cor?

– Aquele ali, verde-piscina.

– Não, é azul-bebê.

– Tanto faz. Eu não vou discutir qual é a cor do prato, mas é este mesmo. Obrigado.

– Sem frango mesmo?

– Isso, isso, sem frango.

Almoçado, fui à Starbuck’s beber um café. Coisa de dez minutos para conseguir um expresso-com-chantilly-mas-me-serve-o-expresso-antes-para-eu-adoçar-e-só-depois-coloca-o-chantily-ok. O meu café-expresso-sem-etc-etc. levou um bom tempo para aparecer, até que notei um movimento diferente atrás do balcão. O café estava sendo preparado por uma moça que estava em treinamento. A atendente mais experiente mostrava como se apertava a válvula da bomba de chantilly e lamentava que o primeiro chantilly servido pela novata fosse só depois de adoçado o café, tudo parecia muito complexo e atípico para todos eles, novata e atendentes experientes. Ainda entreouvi a novata perguntar com o quê eu adoçaria.

Provavelmente, açúcar, mas aí é problema dele. Dá logo este café puro, ela vai te devolver depois, aí eu ensino a parada do chantilly. Fiquei agradecido com a presteza.

Todos ali naquela praça de alimentação, por óbvio, estavam empregados. Todos muito jovens, provavelmente todos no primeiro emprego e, pela idade, não havia como estarem naquela condição há muito tempo. A novata da Starbuck’s foi recém-admitida, porque ninguém fica uma semana numa cafeteria sem conhecer uma bomba de chantilly. Talvez fosse seu primeiro dia de emprego.

É verdade que há setores da economia em que houve uma retração forte. A construção civil foi destruída por estas investigações que pretendem salvar o Brasil. Vamos começar este salvamento aniquilando um setor que emprega com muita intensidade, no qual o Brasil exporta serviços e know-how. Bela maneira de salvar um país. O setor de petróleo também se retraiu. Outro alvo desses salvadores da pátria. O Brasil, emocionado, agradece. 60 anos ininterruptos de corrupção e percentual de pedágio na indústria de petróleo nacional, e temos, apesar disso, uma das atividades mais produtivas e geradoras de tecnologia do País. Dois anos de salvadores da pátria e estamos fechando vagas nesta indústria. Imagino que quando acabarem de salvar tudo, teremos voltado às cavernas.

Parece que o setor de fast-food não se abalou muito, senão não se explica que uma leva de recém-admitidos seja a única opção de mão de obra desta indústria. Mas os colegas jornalistas, se não quiserem trabalhar nos McDonald’s e afins, não terão tanta sorte. O desemprego bateu forte nas redações.

Mas ainda há esperança para os jornalistas que detenham algum conhecimento da matemática. Os números, ao contrário das palavras, não são a principal matéria-prima do jornalismo. Talvez por isso, comunicólogos não se esmerem nas ciências exatas. Grande erro. A economia é assunto que requer uma ou outra continha. Um profissional que saiba fazê-las terá uma vantagem competitiva que, em tempos de vacas magras, pode decidir tudo a seu favor.

Por exemplo, voltemos aos números fantásticos do Fantástico. Alguém na redação da Globo deve ter cometido algum erro. No mínimo, algum editor deixou de desconfiar que algo não batia.

Dizia a matéria que o desemprego está crescendo. Os apresentadores introduziram o assunto de maneira grave, semblante de extrema preocupação. A trilha sonora sublinhava isso. Afinal, já são 7,6% de desempregados. Oito meses seguidos em que este número cresceu.

Primeiramente, um dos erros mais graves que o bom jornalismo pode cometer é desconectar o fato de seu contexto. Tudo pode ser bom ou ruim, dependendo do contexto. Retirar o contexto da notícia só é bom quando se quer manipular os fatos. E manipulação, se é jornalismo, não deveria ser.
Um índice de 7,6% de desemprego é ruim, quando comparado com patamar de 5% em que estávamos há um ano. Mas não é nada absurdo, porque há pouco tempo comemorávamos a faixa de 7% como um índice baixo que havíamos alcançado depois de anos na casa dos 10% para cima. A faixa de 7% é uma conquista recente no Brasil, e voltar a ela não é nenhum desastre. É contrastante com os 5% a que chegamos, mas este foi o recorde da série histórica. Portanto, deve-se mostrar que a tendência dos últimos meses não é satisfatória. Principalmente, se ela se projetasse para os próximos meses, o que não é verdade. Portanto, uma tendência que acaba por aqui não tem nada de preocupante, mas a Globo faz questão de apresentar como uma catástrofe.

Outra coisa que, fora do contexto, é maior do que deveria é a sequência de oito meses de queda no nível de emprego. Se comparar com a recente série de anos de crescimento do mercado de trabalho, é ruim. Só que esta série positiva da qual saímos nunca teve tamanho destaque. O mesmo se pode dizer da comparação com a série de quedas das principais economias do mundo. Os níveis de emprego no Japão vêm em queda há uma década. Na maioria dos países da Europa, há oito anos. O que são oito meses se comparados a oito anos? Portanto, numa economia global em que há encolhimento de empregabilidade crônica há anos, ninguém disse que o Brasil ficou de fora deste ciclo por sete anos e quatro meses, mas que está em queda nos últimos oito meses.

Mas não servia ao Fantástico falar apenas dos desempregados porque, afinal, esta repercussão se daria sobre uma fatia minoritária de desempregados ou diretamente ameaçados, de menos de 10%. Era precisa assustar mais gente. E, daí, na mesmíssima matéria, adverte-se que não está fácil para ninguém, que 48% “dos brasileiros” está fazendo jornada dupla para se manter.

Ora, há um erro factual, logo de cara. É provável que a matéria se refira a 48% da população economicamente ativa. Porque, se falamos de 48% de todos os brasileiros, este é um número próximo de toda a força de trabalho. Equivaleria a dizer que todos os trabalhadores brasileiros têm dois empregos, ou ocupações. Porque mais de metade da população é de crianças, estudantes, aposentados, afastados etc. Logo, é provável que a Globo se referisse a 48% dos brasileiros que trabalham. E vamos ser camaradas, considerar que este erro foi só uma simplificação grosseira deles.

Ainda assim…

Ora, temos 7,6% de desempregados. E temos 48% de trabalhadores com dupla jornada, pelo menos (a matéria mostra gente com três empregos, mas vamos ser conservadores com os números). Temos, portanto, 44,4% dos trabalhadores com uma única ocupação.

Se somarmos as zero ocupações dos 7,6% de desempregados (7,6  x0), duas ocupações de 48% (48 x2) com a única ocupação de 44,4% (44,4 x1), temos  uma oferta de 140,4 ocupações disponíveis no mercado de trabalho para cada brasileiro economicamente ativo. Numa situação assim, isso equivale a dizer que, na média, há 1,4 empregos disponíveis para cada brasileiro que queira trabalhar.

Ou seja, os dados mostrados pela Fantástico, em vez de corroborarem com a ideia que a Globo quer nos passar, de que há uma crise sem precedentes, são números que mostrariam inequivocamente uma situação além da empregabilidade plena.

Eu sou um eterno otimista, mas nem eu acredito que haja mais vagas de emprego (ou ocupação) disponível do que o número de brasileiros capazes de ocupa-las. É óbvio que a Globo mente. Se fala a verdade, mandarei rezar missa, porque o mundo todo está em crise e nossa dificuldade é ocupar tantas vagas de emprego disponíveis.

Portanto, de uma forma ou de outra, se você é jornalista e sabe fazer contas simples, seu emprego está garantido, pelo menos na redação do Fantástico. Porque eu só posso pensar nas seguintes alternativas:

A – Por lá, todos são imbecis completos.
B – Além de serem todos imbecis completos por lá, eles acreditam que somos todos imbecis também.
C – Além de todos serem imbecis completos, e pensarem que todos somos imbecis que não sabem fazer contas simples, eles têm certeza absoluta de que estamos num degrau abaixo da imbecilidade, talvez sejamos vegetais.

Considerando tudo isso, 7,6% de taxa de desemprego, num mundo menos imbecil em que as taxas oscilam por volta de 10%, chegando a mais de 20% em países ricos e desenvolvidos, e estamos bem demais.

Não é Fantástico?

Redação

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