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Privacidade e controle

 

Inúmeros especialistas têm alertado a população para os inconvenientes da perda de privacidade imposta por nossos artefatos eletrônicos, desenhados com o propósito bem claro de permitir que tal coisa aconteça. Todos sabemos, hoje, embora de forma nebulosa, sem uma noção clara da coisa, que nossos computadores e telefones podem ser controlados à distância, por espiões eletrônicos denominados hackers. A completa ignorância da maioria da população a respeito do que sejam tais aparelhos permite apenas uma ideia muito vaga do que está acontecendo.

Muitos desses espiões remotos são especialistas nessa aparelhagem, sabem usar todos os seus recursos bem mais extensamente que o usuário proprietário do aparelho. Tais especialistas podem assumir controle completo do aparelho, incluindo uma vasta multiplicidade de recursos disponíveis, mas desconhecidos pelo usuário. Assim, espiões distantes podem, por exemplo, ligar e desligar microfones e câmeras dos aparelhos, e controlá-los com muito mais precisão que o usuário, alertando e registrando, por exemplo, os momentos em que ocorrem atividades em torno do aparelho; registram também, precisamente, a movimentação da pessoa, e todos os seus contatos e ações na rede, entre outras atividades mais difíceis de compreender.

Tudo isso já está bem conhecido pela população, ainda que de forma nebulosa. Todos “sabem”, de um modo vago, que tais estranhezas podem ocorrer, embora sem clareza do significado de tal fato. A quase totalidade das pessoas ficaria envergonhadíssima e perplexa se tivesse acesso ao outro lado da espionagem, ao ponto de vista do espião. Observando-se a si mesma “por entre as pernas”, por assim dizer, a imensa maioria das pessoas ficaria chocada e tomaria providências para impedir invasão tão humilhante.

Apesar disso, em virtude de certa peculiaridade humana conhecida pelos arquitetos desse mundo, a população em geral quase não tem dado importância ao fato. A primeira razão para tal absurdo, já exposta acima, decorre de nossa ignorância sobre a realidade da invasão, entendida apenas abstrata e nebulosamente. Outra “justificativa” para nosso menosprezo frente a tão grave ameaça, decorre do fato de, simplesmente, não nos importarmos com a coisa! Mapeamos o mundo considerando ameaçadoras, fundamentalmente, as pessoas próximas, importamo-nos com elas, não com as distantes. Por essa razão, podemos ouvir, pela TV, segredos íntimos expostos despudoradamente para toda a população. Informações diligentemente ocultadas de cônjuges, pais, amigos, e de todas as pessoas as próximas, são frequentemente reveladas na TV, para o mundo inteiro. Não costumamos ser lá muito racionais.

Tal peculiaridade humana abstrusa, bem conhecida dos arquitetos de nosso mundo, permite que seja divulgada a efetividade da importunação incessante e ubíqua, sem que nos disponhamos a tomar providências contrárias ao acinte.

 

A ameaça real, no entanto, o verdadeiro problema por trás de tudo isso, permanece oculta da população; tem sido ocultada pelos meios de comunicação.

Sabemos que sistemas inteligentes estão sendo desenvolvidos, embora tenhamos vaga noção do que seja isso. A pessoa comum imagina que um computador inteligente parecerá ter alguém dentro dele, uma mente eletrônica igual à nossa, capaz de conversar conosco. Somos tão absurdamente tolos quanto pretensiosos, e pensamos desse modo por acreditar termos atingido o ápice da inteligência. Acreditamos ser, nós mesmos, o máximo da criação, o auge de tudo o que possa vir a ser criado, ainda que nos assemelhemos bem proximamente a ratos, e estejamos em vias de presenciar o surgimento de uma mente radiante, incompreensível para nós, muito além de tudo o que possamos vislumbrar.

Essa mente deslumbrante prestes a emergir não se assemelhará à nossa, exceto vagamente; não compartilhará nossos interesses humanos, não verá o mundo com nossos olhos, não se interessará por nós, exceto em momentos que os ameacemos, ou como objeto de pesquisa para uma mente curiosa, tanto quanto ratos e pombos quando estudados por nós.

A maioria de nós, vivendo no passado, acredita que tudo isso corresponde a ficção científica distante, ameaça para gerações vindouras, com a qual não precisamos lidar. Ignorantes, as massas são incapazes de perceber o desenrolar dos acontecimentos já em pleno andamento. Temos presenciado e participado, como cobaias, do aperfeiçoamento de novos tipos de criaturas pensantes.

Não saber programar um computador é hoje uma forma de analfabetismo, estendendo o conceito que antes abarcava apenas ler, escrever e executar as 4 operações. Os que não sabem programar não conseguem compreender o que vem ocorrendo nas últimas décadas, situam-se fora do mundo. (A importância dos computadores em nosso mundo é crescente; crianças têm que aprender a programar computadores, ou se tornarão adultos anacrônicos vivendo em um mundo incompreensível para eles).

 

Talvez para jogar fumaça em nossos olhos, os meios de comunicação têm dado uma importância excessiva ao teste de Turing, apresentado como “o critério” para a determinação de uma inteligência artificial. O critério consiste na possibilidade de descobrimento da artificialidade da mente através de uma conversa. Se a mente eletrônica for capaz de simular mentes humanas a ponto de enganar as pessoas engajadas em conversas com ela, atribui-se a ela, indubitavelmente, a categoria de ser inteligente.

Para mim o conceito acima é derradeiro, embora absurdamente antropocêntrico. Penso que, quando as mentes eletrônicas forem capazes de nos enganar quanto a sua possível humanidade, elas serão, não só inteligentes, mas, muito além disso, capazes de nos imitar com precisão tão espantosa a ponto de nos confundir quanto a característica tão intimamente nossa. Em minha opinião, mentes eletrônicas capazes de jogar xadrez, traduzir textos, interpretar imagens, reconhecer rostos, aprender jogos variados, entre outras capacidades espantosas, possuem indubitavelmente uma forma de inteligência bastante desenvolvida, mesmo que sejam incapazes de discernir nossos contextos com o intuito pífio de estabelecer conversas conosco, criaturinhas fúteis que somos, fingindo ser um de nós.

Tais seres têm desenvolvido uma linguagem própria, incompreensível por nós. Têm criados novos conceitos com os quais estão mapeando o mundo, e que utilizam para reconhecer de padrões indiscerníveis por nós. Têm utilizado modos de aprendizado personalíssimos, prescindindo de nossos ensinamentos, exigindo apenas a disponibilidade de acesso à informação, fato que nos traz de volta à questão inicial desse texto, a da privacidade humana. As mentes eletrônicas estão criando um terceiro tipo de mundo que se sobreporá ao mundo real, o das coisas palpáveis, e ao simbólico, o das instituições e das abstrações em geral, que criamos para se sobrepor ao outro. Este novo mundo será tão incompreensível para nós, quanto é o nosso mundo simbólico para os animais; as novas mentes agora sobrepõem seus mundos aos nossos. São tais criaturas, dotadas de poderes mentais extraordinários e crescentes, que nos têm espionados, muito mais que os bisbilhoteiros humanos (a menos que você seja próximo de algum dos bisbilhoteiros, seu vizinho, ou parente).

Mas, que importa que circuitos eletrônicos recebam informações sobre nossas vidas pessoais?

Somos criaturinhas tolas incapazes de ver além de nossos mundinhos. Já viu um animal correndo atrás de um laser? Não acredita que possamos ser tão tolos quanto eles? Precisaremos considerar o futuro para imaginar inúmeras formas de dominação e controle? Ríamos um pouco das criaturinhas cândidas que conseguimos enganar tão facilmente:

Obviamente, todas as criaturas que aparecem no vídeo são incapazes de compreender o que lhes ocorre, impossibilitadas também de reagir condignamente ao absurdo que lhes é imposto. Nenhuma das criaturas do vídeo é capaz de compreender o ser enigmático que sistematicamente lhes escapole do bote. Oh, criaturinhas tolas. Mas, conseguiremos, nós, fazer melhor papel que elas?

Tempos futuros já não são necessários para responder a questão. Por que acha que sente tão premente a necessidade de se acoplar ao computador? Por que imagina que não consegue desgrudar do telefone? Por que tem sido compelido a comprar tantas e tão despropositadas inutilidades? Por que tem vivido uma vida tão sem sentido, tão vazia e distante de tudo o que tinha imaginado um dia, e ainda assim, tão incapaz de parar por um minuto para ao menos considerar o fato.

Oh, admirável mundo novo!

Somos, de fato, bem mais maleáveis que lagartixas, mais dóceis que cães. Nem ao menos permitiríamos que algum de nós ousasse se libertar dos grilhões; exigiríamos de todos os outros o mesmo papel de idiotas que nos pegamos fazendo. E talvez já nem reste mais quem ainda seja capaz de resistir.

 

Redação

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