5.ª
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar! Por que não apagas
Coa esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
.
Quem são estes desgraçados,
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?…
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dizei-o tu, severa musa!
Musa libérrima, audaz!
.
São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz,
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiro ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão…
Ontem, simples, fortes, bravos…
Hoje, míseros escravos
Sem luz, sem ar, sem razão…
.
São mulheres desgraçadas…
Como o Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm,
Trazendo com tíbios passos
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael…
.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram – crianças lindas,
Viveram – moças gentis…
Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus…
Adeus ó choça do monte!…
Adeus! Palmeiras da fonte!…
Adeus! amores… adeus!…
.
Depois o areal extenso…
Depois o oceano de pó…
Depois… no horizonte imenso
Desertos… desertos só…
E a fome, o cansaço, a sede…
Ai! quanto infeliz que cede
E cai pra não mais s’erguer!…
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
.
Ontem, a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido a toa
Sob as tendas da amplidão…
Hoje, o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar…
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar…
.
Ontem, plena liberdade…
A vontade por poder…
Hoje… cúmulo de maldade!
Nem são livres pra… morrer!…
Prende-os a mesma corrente
– Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão…
E assim roubados à morte
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite… Irrisão!…
.
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós Senhor Deus!
Se eu delírio… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus
Ó mar! Por que não apagas
Coa esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?…
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…
.
6.ª
.
Existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e covardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de Bacante fria!…
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?!…
Silêncio!… Musa! Chora, chora tanto,
Que o pavilhão se lave no teu pranto…
.
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança…
Tu, que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!…
.
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga
Como um íris no pélago profundo!…
…Mas é infâmia demais… Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo.
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!…
Colombo! Fecha a porta de teus mares!…
.
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Castro Alves, “Tragédia no mar (O Navio Negreiro)“, trecho
https://www.youtube.com/watch?v=SiSolzu8IZY
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