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Vidas Paralelas: Dilma Rousseff e o Imperador D. Pedro II

Aqui mesmo no GGN tenho visto articulistas compararem o ataque sistemático da imprensa a Dilma Rousseff ao que ocorreu com Getúlio Vargas na década de 1950 ou com João Goulart na década seguinte. Interpretar fatos presentes através do passado pode ser algo proveitoso do ponto de vista didático, mas é também algo muito perigoso.

Afinal, a hipótese do “eterno retorno” não pertence à historiografia e sim à filosofia e às religiões orientais.  Friedrich W. Nietzsche a formulou da seguinte maneira:

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”

Os historiadores geralmente rejeitam o “eterno retorno” com argumentos similares aos que são abaixo transcritos:

“A realidade histórica é, ao mesmo tempo, inesgotável e equívoca. Há sempre tantos aspectos diversos, tantas forças em ação que se recortam e sobrepõe no mesmo ponto do passado, que o pensamento do historiador aí encontrará sempre o elemento específico que, segundo a sua teoria, se revela como preponderante e se impõe como princípio de inteligibilidade – como ‘a’ explicação. O historiador escolhe à sua vontade: os dados prestam-se complacentemente à sua demonstração e adaptam-se igualmente a todo sistema. Encontra sempre o que procura – sejam mitos solares (ou indo-europeus), exigências religiosas, forças sociais ou estruturas econômicas. Mas que o seu triunfo seja modesto: não terá arriscado nada, porque está bem demonstrado que a vida humana possui ao mesmo tempo componentes econômicos, sociais, religiosos, etc., e o nosso homem encontra-se, logo à partida, de posse de uma doutrina que ensina qual desses diferentes aspectos é determinante, fundamental – real.” (Do conhecimento histórico, H.-I. Marrou, Martins Fontes, 4a. edição, 1975, p. 167).

“As pretensas leis da história, ou da sociologia, não sendo abstratas, não tem a nitidez sem rebarbas de uma fórmula física; também não funcionam muito bem. Não existem em si mesmas, mas somente por referência implícita ao contexto concreto: ‘falei globalmente, mas reservo evidentemente a parte das exceções e também a parte do inesperado’. É assim para elas como para os conceitos sublunares, ‘revolução’ ou ‘burguesia’: estão prenhes de todo o concreto de onde as tiramos e não romperam as ligações com ele; conceitos e ‘leis’ histórico-sociológicas não tem sentido nem interesse senão através de trocas sub-reptícias que continuam a manter com o concreto que governam; ainda não o é. Quando falo do trabalho em estática, posso e devo esquecer o que significa ‘trabalho’ no uso quotidiano; o trabalho dos físicos, que só usa esse nome porque era necessário dar-lhe um, não é mais do que o produto de uma força pela projeção de descolamento sob a direção de uma força; como todos os objetos científico, ele é o que definimos: a ciência tem por objeto as suas próprias abstrações; descobrir uma lei científica é descobrir, para além do visível, uma abstração que funcione. Pelo contrário, o ‘trabalho’ vivido não é definível; não é mais do que o nome que damos a um concreto do qual podemos, quando muito, evocar a riqueza confusa a golpes de virtuosidade de pena fenomenológica. Não o definiremos senão para evocar ao leitor a recordação desse concreto, que lhe permanece o único texto autêntico. O ‘ktèma es aei’ não é, portanto, formulável independentemente de um contexto acontecimental; suponhamos que o ‘ktèma’ nos ensina leis repeitantes à revolução, à burguesia ou à nobreza: não tendo os conceitos em questão sentido definido e não recebendo senão um daqueles a que ele se aplica, o ‘ktèma’ não seria mesmo compreensível sem contexto.” (Como se escreve a história, Paul Veyne, edições 70, Liboa-Portugal, 1987, p. 189).

Feitas as devidas observações sobre a impropriedade histórica de se interpretar o presente através do passado, penso que a crise atual se assemelha mais àquela que acarretou a queda de D. Pedro II do que ao assassinato da reputação de Getúlio Vargas e ao golpe de estado civil-militar contra João Goulart. Explico.

O Império era sustentado pela aristocracia agrária que dependia do trabalho escravo. D. Pedro II não encarava os republicanos como adversários e muitos destes aceitavam conviver com a monarquia desde que sua fonte de lucro (baseada na exploração brutal dos negros-coisas) fosse mantida. O pacto tácito de convivência com a família real foi desfeito em razão da libertação dos escravos. A inovação uniu os escravocratas monarquistas e republicanos, empurrando-os para a oposição ao regime. Sem base de sustentação o Império caiu. Os negros-coisas provavelmente lamentaram a queda da família real, mas eles não tinham condições econômicas e militares para sustentar o trono de D. Pedro II.

A queda do Imperador não acarretou um retrocesso. A escravidão não foi restaurada. Algo pior ocorreria aos ex-escravos. Eles se amontoaram nas periferias das cidades e foram silenciosamente ignorados pelo novo Estado republicado. O ex- escravos não receberam terras, compensação econômica, educação, direito a voto ou cidadania plena. Eles estavam num outro Brasil dentro do Brasil. Suas demandas sociais não existiam, pois eles não pertenciam à sociedade brasileira (branca e elitista).

Dilma Rousseff foi eleita pelo povo, mas sua base de sustentação econômica é o empresariado nacional que realiza obras públicas e presta serviços ao Estado e às estatais. As empresas de comunicação (nacionais e mistas) e as indústrias estrangeiras que operam em nosso país apoiaram o derrotado projeto neoliberal de Aécio Neves. Mesmo que o escândalo da Lava Jato venha a explodir na cara de alguns tucanos, me parece óbvio que ele produzirá mais dano à base econômica de Dilma Rousseff do que aos empresários aliados a Aécio Neves. É por causa disto que a situação da presidenta neste momento é mais parecida com a de D. Pedro II do que com a de Getúlio Vargas antes do suicídio ou de João Goulart antes do golpe de 1964.

Ao se suicidar, Getúlio Vargas interrompeu o golpe de estado provocando manifestações violentas de rua que amedrontaram a imprensa. João Goulart não era popular entre os militares e foi traído até pelos generais mais próximos a ele, desistindo com razão de esboçar qualquer resistência ao golpe militar.

Desde a proclamação da república os militares brasileiros desempenharam um papel político importante, especialmente em situações de crise. No momento atual, apesar da exagerada escandalização jornalística do Petrolão e das tentativas da imprensa de empossar o derrotado Aécio Neves no lugar da vitoriosa Dilma Rousseff, as Forças Armadas seguem respeitando a normalidade eleitoral e constitucional As razões para o comportamento dos militares são óbvias: suas demandas de mais verbas para a modernização do Exército, Marinha e Aeronáutica foram atendidas por Lula e Dilma, os governos petistas fizeram significativos esforços para melhorar a capacidade defensiva do país e, tanto quanto possível, prestigiaram nossas tropas. Além disto, mais do que quaisquer outros brasileiros os militares sabem bem como FHC sucateou as Forças Armadas.

Os militares derrubaram D. Pedro II. É conhecida, entretanto, a hesitação do Marechal Deodoro da Fonseca a quem foi atribuída a liderança do golpe de misericórdia que seria dado à monarquia. No presente momento não há um só militar que consiga unir em torno de si as mais importantes lideranças políticas do Brasil.

É fato: o golpe de 1964 conseguiu unir a maioria dos brasileiros contra as Forças Armadas. Os partidos que tem maior destaque no cenário nacional desde a promulgação da CF/88 (PT, PMDB, PCdoB, PSDB, PSB, PSOL, etc…) tem a mesma origem: a oposição à Ditadura. A longa convivência democrática entre militares e civis após o fim da Ditadura não foi capaz de cicatrizar todas as feridas. Prova disto é a CNV e as divergências que o relatório final dela produziu entre civis e soldados. Estas são sumariamente as razões pelas quais FHC disse que  “No passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se veem sinais”.

O ex-presidente tucano quase sempre diz sandices que pede para o respeitável público esquecer ou que ele nega ter dito. Afirmar que um golpe militar contra Dilma Rousseff não é desejável e, provavelmente, não ocorrerá foi a única coisa relevante ele disse nas três últimas décadas. Os historiadores provavelmente concordarão comigo.

 

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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  • Comparação inusitada, mas com alguns acertos

    De fato, é uma generalização apressada comparar o momento vivido por Dilma com o momento vivido por Vargas e Goulart: no tempo destes, havia uma violenta agitação no cenário político, e não apenas na mídia, bem como declarado apoio a uma intervenção militar. No momento atual, o cenário político é de placidez, e apenas na mídia se verifica um certo frisson. Os apelos ao impeachment são patéticos, e vê-se que tucanos e petistas são, na verdade, como duas crianças brincando em uma gangorra: quando um sobe, o outro desce. Lula não teria tido o sucesso que teve em seus dois mandatos se não fosse a estabilidade herdada do plano real, e agora os tucanos esperam a sua vez vendo Dilma se queimar.

    E concordo, sim, há paralelos entre o governo Dilma e o final do segundo império, mas não comparo Dilma a Pedro II, e sim à princesa Isabel. Ambas foram astros sem luz própria, figuras desgraciosas e algo patéticas, colocadas em uma posição de poder que excedia em muito sua capacitação pessoal, mas quiçá bem intencionadas. É exagero atribuir a Isabel o papel de redentora, como se a abolição tivesse dependido exclusivamente de sua vontade - seu papel no episódio foi meramente protocolar, substituindo seu pai que estava doente - mas foi consenso entre os fazendeiros escravocratas que a princesa teve um papel decisivo na queda do gabinete do Barão de Cotegipe, o último pró-escravidão, e na ascenção do gabinete João Alfredo, que fez a abolição. Isabel não seria perdoada por isso. De fato, os ex-escravos passaram a venerar ostensivamente a "redentora", dando claras mostras de que apoiariam um terceiro reinado, e isso veio a complicar ainda mais a situação da princesa, já questionada por ser excessivamente católica e submissa ao marido francês, bem como marcaria o início das hostilidades entre os ex-escravos e os republicanos. No quase incruento golpe de estado que instituiu a república, as únicas vítimas fatais foram uns negros, em Fortaleza, que tiveram a audácia de fazer uma manifestação em defesa da monarquia e foram abatidos a tiros.

    Já Dilma depende do empresariado nacional que realiza obras públicas, mas isso é o produto da política que ela deliberadamente implantou: a ressurreição do velho nacional-estatismo, com seu séquito de empresários amigos-do-rei mamando nas tetas dos bancos estatais, pagando juros muito inferiores aos cobrados pelos bancos privados aos cidadãos comuns, todos recebendo por suas obras o dobro do que valem e distribuindo o troco ao séquito de políticos da base aliada. O nacional-estatismo foi lançado por Vargas, continuado por Kubitchek, levado pelos militares ao auge nos anos setenta e ao esgotamento nos anos oitenta, quando quebrou o país. Os dois governos FHC promoveram o desmonte do nacional-estatismo, e Lula chegou a dar um passo à frente, mas Dilma deu dois passos para trás, ressuscitando o falido modelo - talvez porque não soubesse fazer outra coisa. Mas Dilma não será alvo de impeachment, nem de golpe militar. Aos tucanos não interessa derrubar Dilma, pois confiam no movimento da gangorra e estão prontos a ascender novamente tão logo a presidenta dê com o traseiro no chão. Os militares são carta fora do baralho, pois perderam praticamente todos os seus antigos apoiadores em razão do fracasso final de seu regime, momento que coincidiu com a falência do nacional-estatismo. Enfim, é isso: todos sabem que o presente ciclo de euforia se encerrou, e estão só esperando a brasa virar cinza. Dilma não passou de um fósforo que Lula riscou e deixou queimar. No momento certo, Lula anunciará seu rompimento com Dilma e se lançará candidato para 2018 com discurso de oposicionista, culpando a presidenta por tudo o que deu de errado e afirmando que não sabia de nada e que em seu governo tudo deu certo. Enquanto Lula e os tucanos se digladiam na campanha que promete ser quente, Dilma se retirará de cena tão melancolicamente quando a princesa Isabel.

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