Opinião

Aposentemos Vegécio!, por Manuel Domingos Neto

Aposentemos Vegécio!, por Manuel Domingos Neto

É pavoroso ver homens se matando. Detesto luta de boxe, forma civilizada de apresentar gladiadores. Como se divertir vendo um homem amassar a cara do outro?

Não gosto de futebol, alegoria da guerra que encanta o mundo. Esporte é bom para a saúde, mas competições esportivas são sobrevivências de práticas de preparo de guerreiros. Prefiro conversas entre flautas e violões, piano e violinos… Competições estimulam a vontade de sobrepujar o outro, não instigam a harmonia, o altruísmo, a solidariedade.

Repugno o sacrifício de viventes. Abomino touradas. Minha filha mais nova apontou-me a malvadeza do civilizado que convive placidamente com animais de rua. A crueldade com essas criaturas é prima-irmã da perversidade com os humanos.

Estudo a guerra porque a detesto, mas pouco ou nada entendo deste desatino. Acompanho Roger Caillois: “a guerra possui, em grau elevado, o caráter essencial do sagrado: parece proibir que seja considerada com objetividade. Ela paralisa o espírito examinador”.

Luigi Bonanate concluiu que o conhecimento sobre a guerra “é extraordinariamente limitado”; quanto mais se tenta conhecer “o evento de mais alta concentração de valor que podemos imaginar”, mais distante ele se torna.

Eludindo a complexidade do fenômeno, o civilizado adota o reducionismo de Clausewitz, de que a guerra seria a “continuação da política por outros meios”. Tal formulação separa o político do guerreiro, sendo, o primeiro, um negociador e, o segundo, agente da força bruta. Assim, permite ao civilizado afirmar que o objetivo da guerra é a paz, a harmonia, não o do exercício do domínio.

Em outra passagem, Clausewitz disse que a guerra seria “um ato de violência destinado a forçar o adversário a executar nossa vontade”. Contradiz, portanto, a percepção da guerra como a busca da harmonia.

A guerra não é a mera continuidade da política. Coletivos humanos têm necessidades e valores que transcendem o que seria admissível como objetivos políticos: se enfrentam quando percebem que suas necessidades de alimento, proteção e reprodução não estão asseguradas. Essa percepção é sempre relativa.

Mais que prova de força entre coletividades, Estados, partidos ou classes sociais, a guerra é o confronto de vontades nem sempre controláveis e sua ocorrência vai além do horizonte testemunhado por Clausewitz, um oficial prussiano que escreveu na primeira metade do século XIX, não gostava de judeus e odiava franceses.

A guerra se manifesta desde tempos imemoriais, não aguarda o surgimento do Estado e não respeita codificações inerentes ao que o moderno chama de “política”. A paz aspirada pelo civilizado, resultando da violência, será sempre o tempo de preparação para uma outra guerra.

Em “tempo de guerra”, os pacifistas proliferam. Muitos são honestos, mas inconsequentes. Evitam a reflexão penosa acerca do que consiste de fato a condição humana.

Quem gosta mesmo da paz repele a modernidade fabricada por capitalistas com a ajuda de religiosos, cientistas e soldados.

Militares de todo o mundo repetem Vegécio: “si vis pacem, para bellum” (pela paz, preparemos a guerra).

Ora, se queremos a paz, preparemos a paz!

Que tal iniciar exigindo o desmonte da OTAN, a eliminação dos arsenais nucleares, a supressão dos complexos industriais-militares, a proibição das lutas de box, a expropriação de grandes fortunas, a extinção dos enfrentamentos alegóricos através de olimpíadas… em resumo, lutando para refundar a civilização pondo fim ao capitalismo?

Neste caso, enviaríamos as crianças para a escola não em busca de um lugar ao sol, mas para aprender que o sol é de todos.

A nova ordem mundial que se anuncia nos escombros da Ucrânia deve aposentar Vegécio, um nobre romano que possuía escravos e deificava imperadores!

Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, em 1976. Obteve o título de Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de Paris III, em 1976, e o título de Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa, superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, estado pelo qual também foi deputado federal. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense, foi também vice-presidente do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Manuel Domingos Neto

Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, mestre pela Universidade de Paris III e Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense

Manuel Domingos Neto

Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, mestre pela Universidade de Paris III e Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense

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  • Uma observação sobre o boxe: foi nele que os negros americanos demonstraram a sua imensa superioridade com relação aos brancos - com força, técnica, determinação e inteligência.

  • A guerra é a continuação da busca incessante do lucro pelo último meio disponível: a eliminação física do concorrente. A guerra é a filha primogênita da propriedade. E o filho bastardo da propriedade é o monopólio. Desconfio fortemente que a paz não tem valor de mercado; sua cotação só oscila quando a guerra se aproxima - e só aí há o que ganhar, e o que perder. Paz é estabilidade; e com cotações estáveis, ninguém enriquece mais que os outros. Tocamos, então, o calcanhar de Aquiles da humanidade: o desejo de ser diferente, ou seja, melhor. Em suma, mais rico.
    Para entender a política, siga o dinheiro. Para entender o dinheiro, utilize-se da política.
    Uma vez que se entra por esse caminho - que sempre vai dar na guerra, fria ou quente, declarada ou não - passa-se ao siga os lucros.
    Lucro e logro compartilham a mesma etimologia. Política e guerra, a mesma semântica, figurativamente, já que a segunda é a continuação da primeira, segundo o Clausewitz. Honestamente, não sei de nenhuma maneira de desmenti-lo. Sem política, sem guerra. Com política, chega-se inevitavelmente na guerra. A história da Europa, antes e depois do tratado da Vestfália, é a história de conflito político constante e guerra incessante, ininterrupta, levada aos quatro cantos do mundo pelo imperialismo, com a própria Europa como protagonista absoluta, pelo menos até a 1ª metade do século XX; a partir daí, os Estados Unidos, praticamente coadjuvantes até então, se tornaram a Europa do mundo. É uma história de sangue, massacres, genocídios e morte. É a história da civilização. A história da civilização nunca foi uma história de paz; nunca. Não há necessidade de preparar-se para a guerra para ter a paz; todas as vezes que a humanidade gozou de um pouco de paz, foi apenas um intervalo entre guerras. A paz não é uma desonra? Não foi isso que Churchill disse a Chamberlain: "Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terás a guerra." Por que a paz é desonrosa? Por que ele não disse, 'entre a paz e a guerra'? Porque a paz não existe. A paz é a ausência da guerra.
    Quando reconhecermos que a paz é uma miragem, talvez haja menos espanto diante da guerra.
    Querem chegar a solução desse estado de coisas? FOLLOW THE PROFITS !!!

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