Mortos-vivos na paisagem tropical, por Felipe Costa

Mortos-vivos na paisagem tropical

por Felipe A. P. L. Costa

Fazer previsões é uma das características do conhecimento científico. Em biologia da conservação, a ciência da escassez, isso inclui arriscar palpites sobre as chances de persistência de populações naturais. Não se trata de promover chutes, mas sim de obter estimativas criteriosas fundadas em métodos rigorosos. Certas técnicas de análise, por exemplo, permitem estimar a probabilidade de persistência de uma população durante um dado período de tempo. Desse modo, é possível descobrir quantos indivíduos de uma espécie (vegetal ou animal) são necessários para ter uma população mínima viável. Esta expressão envolve noções importantes. Mínima, por exemplo, indica que existem atributos biológicos da espécie ou circunstâncias ecológicas que governam a probabilidade de extinção; viável salienta o interesse na persistência de populações no longo prazo – algo como 100 anos ou mais.

Não existe um número mágico, que possa ser usado indiscriminadamente com qualquer espécie, sob qualquer circunstância, mas a ideia fundamental por trás desse conceito vale para todas as populações: há um número mínimo de indivíduos abaixo do qual a persistência não é mais possível, ao menos sem a nossa deliberada intervenção. É vital, portanto, que o tamanho populacional seja mantido acima desse valor crítico. Persistência duradoura, no entanto, não significa persistência por tempo indefinido – cedo ou tarde todas as populações serão extintas.

Extinção e especiação

Extinção é um fenômeno natural, tão natural quanto o fenômeno oposto, a especiação – processo por meio do qual duas (ou mais) linhagens distintas surgem a partir de uma linhagem ancestral única. Ora, se a extinção é um processo natural, por que se faz tanto barulho contra a perda de biodiversidade? A resposta não é exatamente óbvia, mas é relativamente fácil de entender: porque a taxa de extinção (número de populações ou espécies perdidas por unidade de tempo) aumentou dramaticamente nas últimas décadas. Para se ter uma ideia, enquanto os paleontólogos calibram as taxas de extinção das espécies fósseis que eles estudam em uma escala, digamos, anual, biólogos conservacionistas falam das perdas atuais de espécies empregando uma escala graduada em dias ou mesmo em horas. A diferença é brutal.

Evidências de episódios de extinção em massa provocados por populações humanas têm sido encontradas em praticamente todos os continentes e regiões habitadas da Terra, inclusive nas Américas. Ao que tudo indica, porém, nunca, antes, tantas espécies desapareceram em um intervalo de tempo tão curto como agora. Quando biólogos e outros cientistas advertem para os riscos de extinção de populações locais ou para a ameaça de desaparecimento global de espécies, eles não estão exatamente reivindicando a suspensão por decreto de um fenômeno natural, mas sim chamando a atenção do público para atividades humanas insensatas, como caça e pesca excessivas, poluição, introdução de espécies exóticas e destruição de hábitats naturais, que ampliam ainda mais esses riscos.

A destruição e a fragmentação de hábitats promovidas ao longo de décadas pela nossa espécie aceleraram em muito as taxas naturais de extinção. Mantido o atual ritmo de destruição, a paisagem tropical em breve será formada por umas poucas ilhas de vegetação nativa mergulhadas em uma matriz de áreas empobrecidas ou degradadas – e.g., pequenos remanescentes florestais cercados por extensas áreas de pastagens. De modo semelhante ao que acontece com as ilhas oceânicas, o tamanho e o grau de isolamento desses fragmentos afetam em cheio a biodiversidade e o tempo de persistência das populações que sobrevivem dentro deles.

O problema da fragmentação

Em Minas Gerais – um dos estados brasileiros mais ricos em biodiversidade, mas também um dos mais cínicos e atrasados em termos de proteção ambiental –, muita coisa já foi destruída a troco de nada: a cobrança de impostos sobre ‘terras improdutivas’ (i.e., recobertas com vegetação nativa), por exemplo, fez com que durante muitos anos os agricultores mineiros simulassem ‘atividades produtivas’ simplesmente queimando trechos florestados de suas propriedades, mesmo quando não precisavam fazê-lo. Talvez eles, de um jeito ou de outro, até viessem a desflorestar a maior parte de suas propriedades, mas o papel do governo estadual acelerou e ampliou de modo decisivo o alcance da destruição.

A fragmentação provoca um aumento generalizado nas chances de extinção entre as espécies remanescentes, elevando o número de reféns (espécies que passam a depender de nossa intervenção para persistir em determinado local) e de mortos-vivos (e.g., árvores adultas, vivas e fisiologicamente sadias, mas que não mais conseguem se reproduzir com sucesso). Em última análise, tudo isso acontece porque a fragmentação reduz o tamanho efetivo das populações, empurrando muitas delas para baixo da linha que sinaliza uma população mínima viável. O pior dos mundos para uma ilha de vegetação é ela ser pequena e estar longe de outras áreas semelhantes, pois a perda de espécies é mais rápida e fácil em fragmentos pequenos e isolados, ao mesmo tempo em que a recolonização se torna mais lenta e difícil.

De resto, se por um lado a destruição física de hábitats tem um impacto mais ou menos imediato sobre populações e comunidades ecológicas locais, as consequências negativas da fragmentação nem sempre são óbvias e, portanto, nem sempre são percebidas com facilidade e rapidez. Combater esse problema exigiria a implantação de um expediente que ainda é absolutamente estranho à cultura brasileira: monitoramento.

Na prática, como não é possível monitorar as flutuações numéricas de todas as populações encontradas em um dado hábitat (de 50 mil a 100 mil populações de espécies diferentes podem conviver em alguns hectares de floresta tropical), os estudiosos procuram acompanhar o destino de uma ou outra espécie-chave – e.g., árvores cujos frutos são utilizados por muitos consumidores diferentes ou animais predadores que ocupam o topo da cadeia alimentar. Nesses casos, as espécies-chave podem ser usadas como pistas ou indicadores do que se passa dentro de sistemas ecológicos mais amplos.

Monitorando espécies-chave

Grandes vertebrados terrestres, por exemplo, podem desaparecer logo após a fragmentação de seu hábitat. Às vezes, no entanto, os efeitos demoram a surgir, dando a falsa e perigosa impressão de que muitas espécies conseguirão persistir, mais do que de fato termina ocorrendo. Equívocos desse tipo devem ser mais comuns com populações de organismos longevos, como árvores de grande porte.

Uma análise populacional com base apenas na presença de árvores adultas, por exemplo, não é inteiramente confiável. O exame de certos atributos (sistema reprodutivo, grau de tolerância ao endocruzamento etc.) das espécies presentes e das novas circunstâncias ecológicas (ausência de polinizadores ou de dispersores,  elevação na taxa de mortalidade etc.) pode revelar que, apesar da boa aparência, o fragmento remanescente é habitado por inúmeros mortos-vivos: árvores adultas, vivas e fisiologicamente sadias, mas que não conseguem mais produzir seus próprios descendentes. Essas árvores não conseguem florescer; se florescem, não conseguem frutificar; se frutificam, suas sementes não são espalhadas; se são espalhadas, as sementes não mais encontram locais propícios para germinar e se estabelecer…

Um caso particularmente notável de mortos-vivos envolve espécies de plantas dioicas, nas quais alguns indivíduos só produzem flores femininas enquanto os outros só produzem flores masculinas. Espécies de árvores dioicas são relativamente comuns nos trópicos e, em certos casos, indivíduos da mesma espécie podem preferir hábitats distintos de acordo com o sexo: enquanto as árvores femininas crescem melhor em hábitats úmidos ou sombreados, por exemplo, os indivíduos masculinos são encontrados principalmente em hábitats secos ou ensolarados. Em uma paisagem fragmentada, essas diferenças reduzem ainda mais as chances das espécies de plantas dioicas estarem adequadamente representadas por árvores de ambos os sexos em ilhas de vegetação remanescente. E é justamente essa a paisagem dominante em muitas reservas e parques existentes no país: uma pequena amostra de vegetação nativa, rodeada por extensas áreas biologicamente empobrecidas ou degradadas.

Em um mundo cada vez menor e mais apertado, onde o espaço deixado por nós para as outras criaturas não para de diminuir, os mortos-vivos assombram a imaginação e ameaçam transformar em cemitérios muitas das unidades de conservação existentes no país. Frear essa erosão biológica não é tarefa impossível, mesmo em um país tão rico em biodiversidade, mas ainda tão relapso em termos de proteção ambiental. Aqui, a exemplo do que acontece em outros países, a luta pela conservação de sistemas ecológicos naturais é cada vez mais uma luta contra o tempo e as falsas aparências – em todos os sentidos.

[Nota: o texto combina passagens de dois capítulos do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª ed., 2014). Versão algo diferente foi originalmente publicada na edição n. 175 (junho de 2001) da revista Ciência Hoje.]

Redação

Redação

View Comments

  • Mais humanos, menos ambiente

    Mais humanos, menos ambiente de qualidade para todos. Como solucionar, um filho por casal durante alguns séculos?

  • mais....

    Caro sr., primeiramente, existe um certo Rui Daher, que escreve em alguns lugares na imprensa tupiniquim, que deveria sempre ser consultado por quem gosta e escreve sobre este assunto. Não concordo com muitas das sua colocações, mas o respeito. Toda a sua formação intelectual e teórica é embasada por umas tais Andanças Capitais. Dá par escrever sobre bosta de vaca de dentro do escritório. Mas nunca se saberá tanto sobre a tal, se não tiver pisado nela. Garanto, que depois do feito, terá outra opinião sobre a matéria. A foto que querem passar degradação, para mim representa vida, progresso, trabalho, respeito. Respeito pelas pessoas que trabalham para alimentar este país e o Mundo. Respeito pela natureza, que o agricultor lembrou em preservar na árvore. Deve ser uma Castanheira, Jequitibá ou Peroba, para ser deixada no meio do campo. Quer ver desrespeito com o Meio Ambiente? Vá no banheiro da sua casa. Aquilo que você fez hoje de manhã, não desapareceu na "magia" do redemoinho. Foi parar em algum rio que você ajudou a degradar na cidade. Lá no interior, onde foi tirada esta foto, ele estará ou será mantido limpo. Coisas de respeito.      

Recent Posts

Governo federal suspende dívida do Rio Grande do Sul por três anos

Isenção dos juros incidentes sobre o estoque da dívida vai liberar mais R$ 11 bi…

17 minutos ago

Lula vai anunciar novas medidas de apoio aos cidadãos do Rio Grande do Sul

Vítimas das enchentes devem receber auxílio financeiro imediato, além da inclusão no programa Bolsa Família

25 minutos ago

Ex-advogado de Trump confirma pagamento de propina a atriz pornô

Em meio ao julgamento de ex-presidente, Michael Cohen diz que pagou US$ 130 mil do…

2 horas ago

TV GGN Justiça discute estratégias para recuperação financeira no RS

Medidas como a liberação do FGTS e a suspensão de prestações habitacionais amenizam os desafios…

2 horas ago

As margens não são plácidas: um dia tudo transborda, por Maria Betânia Silva

O fenômeno da manipulação de fatos e produção de mentiras se instaurou como a nossa…

2 horas ago

Cientistas identificam circulação de vírus mayaro em Roraima

O mayaro não é contagioso. Porém, o sangue dos doentes é infectante para o contágio…

2 horas ago