Textão de Carnaval: Desenhando Tretas Culturais, por Gunter Zibell

Textão de Carnaval: Desenhando Tretas Culturais

por Gunter Zibell

Quase toda semana há um assunto que comove as redes sociais. Só este ano, em apenas 6 semanas, já tivemos:

– Os Fogos & os Pets

– O Menino solitário de Copacabana

– Os Cineastas desempregados

– Pablo Vittar: canto ou atitude?

– Por que Carmen não pode matar Dom José?

– O Manifesto das 100 Francesas

– Existe Trans Face como existe Black Face?

– A Filósofa que ousou não debater

– Rappers amigos vs Rappers do Contra

– O Bloco que defende a Tortura

– Eu sou o que visto: as Fantasias de Carnaval

E ainda vivendo sob os resquícios de discussões de 2017 sobre arte em museus e questões raciais.

Mas as discussões são necessárias? A meu ver, em parte sim, em parte não.

A parte do sim é simples e intuitiva: em um Mundo com Redes Sociais as pessoas ganharam voz. Todos acharem que têm razão em algo não é novidade, mas podermos criticar personalidades que são formadoras de opinião, sim, é. O direito de todos a tentar influenciar positivamente a Sociedade é o de sempre, mas os mecanismos mudaram. Se antes precisávamos escrever para um jornal (e ter sorte de ver a carta publicada) ou esperar a próxima ida a um happy hour para expressar o que sentimos, bom, agora está ao alcance de um clique. Aconteceu, virou post. E isto é certo, é moderno e é justamente o contrário das distopias que prevêm controle hegemônico de mentes.

A parte do não já depende de como vemos História, Direito, Política e Movimentos Sociais. Muitos de nós acreditam que é possível influenciar debates suprimindo críticas. Isso não vai acontecer, apenas aumentará ressentimentos. Outros ainda acreditam que irão convencer antagonistas de seus argumentos, o que é um grande exercício de autoengano. Tão grande quanto achar que algum dia teístas e ateus encontrarão um consenso.

Embora todo mundo tenha opinião já formada sobre tudo, existem posições que as pessoas podem mudar no tempo. Também há grande contingente de pessoas que não depende da opinião que estiver em pauta, daí que se tornam mais observadoras que agentes nas discussões. E há muitas posições que, apesar de serem intelectualmente honestas, são frutos de desinformação.

Então, o que podemos fazer de construtivo num cenário assim?

– divulgar nossas crenças pessoais, pois conquistamos esse direito

– respeitar a honestidade intelectual dos amigos. Afinal, se são nossos amigos é porque confiamos neles (o que é diferente de concordarmos com eles.) Não diga que um amigo é uma pessoa ruim ou falsa por acreditar em A ou B. Diga que acredita que C é uma posição mais justa que A e que D é um pensamento mais moderno que B. Se eles não se convencerem, não tem importância, há outras pessoas lendo que poderão perceber que seu argumento é bom, o que não aconteceria sem o debate público

– informar-se, pesquisar, refletir.

Sendo assim, vou expor o que eu acho que acontece pelo mundo, principalmente nas sociedades mais urbanas e politicamente liberais.

Vejo quatro grandes grupos principais: ultraconservadores, fundamentalistas, liberais/libertários e “politicamente corretos” (um apelido usado pelos antagonistas tanto de identitaristas de esquerda quanto de social-liberais.)

E vejo que estes grupos podem variar de poder de convencimento com o tempo. Há exceções, principalmente quando as instituições políticas democráticas são recentes ou quando a educação média é insuficiente ou extremamente permeada por valores conservadores. Mas, no geral, conservadores encolhem no tempo e politicamente corretos, mesmo que ainda muito minoritários, se fazem mais e mais ouvir.

E às vezes aquilo que é considerado libertário hoje poderá ser considerado conservador amanhã. Observamos isso no decorrer de décadas.

E nem toda posição de vanguarda será convincente um dia. De qualquer modo, assim como nas artes, a reflexão é sempre bem-vinda.

Ah, muito importante: as pessoas tem lado. Não necessariamente é uma posição monobloco, há sempre nuances. Mas eu não tenho dificuldade para me apresentar como social-liberal concordante com o que parece ser um espírito de tempo apelidado de politicamente correto.

Isso implica em algumas posições sobre usos e costumes:

1)      Favorável a liberdades individuais sempre que não causarem mal a ninguém

2)      Favorável a atitudes que possam ajudar a combater preconceitos dirigidos a grupos identitários vulneráveis e/ou subalternos

3)      Reconhecimento de que há intersecções entre comportamentos públicos e legislações, mas que estas podem mudar no tempo

Pausa para olhar para um esquema que tenta apresentar como vejo tudo isso (ilustração ao final):

 

Quais as principais tendências:

1)      As sociedades tendem a abandonar proibições (ou censura) de decisões individuais que não prejudicam a sociedade. Nem sempre essas proibições eram no âmbito legal, muitas vezes se usava de argumentos em torno da cultura tradicional (aquilo de ser mal-visto) para coibir. Sociedades muito conservadoras passam da proibição à sociedade crítica, outras disso a um abandono racional de controles desnecessários ou que não trazem nenhum benefício social.

2)      O combate a preconceitos, como machismo, racismo, homofobia, intolerância a religiões, xenofobia, classismo. Em geral recorre-se a crítica social (que é uma liberdade de expressão) para isso. Às vezes a legislações afirmativas e includentes. Mas em alguns casos também passa a se considerar crime a manifestação preconceituosa.

Eu acredito que essas são as principais tendências porque são as posições que me parecem racionais, justas e modernizantes.

Quer dizer… à medida em que se ampliam – universalmente – alguns fenômenos sociais:

1)      Noções de Direitos Humanos e de Minorias

2)      Crítica à Explosão Demográfica

3)      Aumento de nível médio de educação (que ajuda na compreensão do que é preconceito)

4)      Democratização dos sistemas políticos e mídias

5)      Disseminação de tecnologia (que anula o discurso da força em questões de gênero)

6)      Globalização e Redes Sociais (que expõe os pontos preconceituosos de cada cultura)

É óbvio que se alguém for mais conservador em uma ou outra coisa não concordará nesse tema, o que não impede de concordar com o curso da tendência geral.

Aquilo que é justo,  moderno ou socialmente aceitável, como sabemos, não é uma verdade gravada em pedra, mas é mutante no tempo. No passado já houve hegemonia de pensamento a favor de menos direitos para o gênero feminino,  de associações entre Igreja e Estado (levando a legislações teocráticas) e inclusive de voto censitário (qualificado conforme status social ou letramento do eleitor.)

Nem sempre há uma só direção no tempo: para o consumo de algumas substâncias aditivas já houve vais e vens. Já houve quem acreditasse em reprimir religiões, liberdade de agremiação política e/ou liberdade econômica como modo de justamente se obter justiça social.

Ou seja, nem tudo é coerente na História, que está em constante transformação.

Mas voltando às tretas de 2018… Quais os principais pontos de fricção?

A)     Ultraconservadores (também apelidados de “Populistas de Direita”) x Fundamentalistas: são relativamente menos visíveis em redes sociais, talvez porque com frequência se aliem politicamente e ambos sejam muito falsos moralistas (tendem a ser autoritários sobre o comportamento individual de todos a partir de seus valores, mesmo que os outros não lhe prejudiquem em nada.)

Mas existem questões muito importantes, como o racismo dirigido a imigrantes nos países ricos e a intolerância a religiões minoritárias. Quando um grupo representa a classe média (em geral liberal em economia) e o outro a massa popular, como no Egito contemporâneo, podem entrar em severo choque. Já nos EUA atuais os mais pobres são geralmente imigrantes não protestantes que se aliam às mídias liberais e elites das duas costas.

Grosso modo fundamentalistas aceitam algum combate a discriminações, desde que lhes convenha.  São radicalmente contra preconceitos dirigidos a seus grupos (como a islamofobia), mas estimuladores de preconceitos como a homofobia.

Eu diria que os grandes temas que separam esses grandes grupos são a xenofobia (nos países ricos) e o alcance social do Estado (nos países em desenvolvimento)

B)      Grupos conservadores x Politicamente Corretos: não tenho muitos amigos presenciais ultraconservadores ou fundamentalistas. Em geral quando debatemos é para causas mais gerais como Redução da Maioridade Penal (eles costumam ser a favor, eu contra) ou sobre criminalização da Homofobia (eles costumam ser contra e eu a favor.)

Eu também sou muito entusiasta do combate a bullying em escolas e despenalização da maconha e do aborto, no que eles são geralmente contra, e esses grupos costumam ser favoráveis a ensino religioso em escolas públicas (no que eu sou contra, embora não tenha nada contra religiões ou ensino religioso em escolas privadas.)

Tanto ultraconservadores como fundamentalistas costumam dizer que expressar um preconceito é apenas “liberdade de opinião”. Eu não concordo com isso, claro, mas costumo apontar uma contradição: esses grupos, que se dizem defensores da liberdade irrestrita de opinião, nunca questionam a Lei 7716/89 antipreconceitos, que proíbe o livre curso de “opiniões” racistas ou antirreligiosas mas, infelizmente, não restringe discursos homofóbicos.

Pelo que considero que estão fazendo apenas um discurso de conveniência política, já que se LGBTs passarem a ter os mesmos direitos não prejudicará em nada a vida deles. Ou seja, o que chamam de opinião é apenas defesa do preconceito mesmo.

C)      Ultraconservadores x Liberais (em valores): há liberais em valores tanto na direita econômica (os libertários) como na esquerda econômica (os progressistas), sendo que com os primeiros as tretas são poucas, basicamente em torno de liberdade sexual  e para consumo de substâncias.  Já com os segundos há discussões adicionais, principalmente em torno de estratégias para lidar com o racismo.

Isto ocorre porque há frequentemente uma sobreposição entre preconceitos racistas e classistas, e porque, embora liberais libertários não sejam preconceituosos, eles nem sempre concordam com a necessidade de ações afirmativas por parte do Estado.

Fora de questões que envolvam patrimônio, impostos ou gastos do Estado, que causam as discussões entre conservadores e progressistas, o discurso geral de valores de libertários e progressistas é, no entanto, parecido: ambos são ferrenhos defensores da liberdade de expressão.

D)     Liberais (em valores) x Politicamente Corretos: sendo que os últimos além de serem muito reduzidos em número são dissidências recentes de seus grupos de origem. Tanto é assim que até hoje são definidos por apelidos jocosos que os outros dão.

Mas, apesar de se tratarem dos menores grupos nas sociedades presenciais, têm sido, ao que parece, a fonte do maior número de discussões em redes sociais.

Politicamente Corretos é apenas um apelido comum, porém mais conhecido, a muitos militantes de movimentos identitários. Outros apelidos são “justiceiros sociais”, “xiitas”, “marxistas culturais”, “radfems”,  etc. Não importam nomes aqui, fiquemos com o apelido mais conhecido.

Uma outra coisa é que, do mesmo modo que os liberais em valores, os politicamente corretos também se subdividem entre aqueles que creem mais em mercado e outros que creem mais no estado. Acaba havendo discussões dentro das discussões.

De qualquer modo, os pontos principais de fricção parecem ser a definição de prioridades dentro de cada ideologia política e a definição em geral dos limites para a liberdade de expressão.

Os liberais, quer sejam libertários quer sejam progressistas, são grupos de pensamento, como quase todos os outros, advindos dos grupos historicamente com maior conhecimento e/ou valoração social, ou seja, frequentemente brancos, homens, hétero, de classe média.  Basta olhar para qualquer congresso ou academia nas Américas ou na Europa para se perceber. E não há culpa alguma nisso, por óbvio. Nem isso significa que sejam racistas, machistas, homofóbicos ou xenófobos.

Mas uma das acusações que se lhes fazem com frequência é a de pouca empatia (ou sensibilidade) em relação às demandas de grupos subalternos (minorias e/ou maiorias vulneráveis.) A resistência, entre eles, a conceitos como “lugar de fala” é relativamente maior que entre, dependendo do assunto, mulheres, negros e gays (e em países ricos, imigrantes.)

Frequentemente aparentam acreditar que suas visões macropolíticas (liberalismo ou socialismo) são mágicas o suficiente para resolver todos os problemas. Eu (e suspeito que muitos “PCs” concordem comigo) acredito que não. A utopia liberal talvez um dia resolva ineficiências de gestão econômica, mas dificilmente lidará proativamente em relação a racismo. A utopia socialista, por sua vez, talvez reduza injustiças entre classes sociais, mas saberá lidar com minorias sexuais ou religiosas? E talvez ambas sejam insuficientes para confrontar o machismo.

Uma outra acusação possível é a da reação desproporcional a críticas. A muitas críticas pertinentes se alude censura ou perseguição. Mas a crítica social também é um exercício de liberdade de expressão, depende desta portanto. Essa resistência a questionamentos é tão comum que não raro une solidariamente extremos políticos. E não resolve nada, porque são as  causas representadas que demandam respostas mas se a única resposta dada for criticar os críticos, entram-se em loop.

A saída para isso é considerar que discursos de ódio, contra o estado laico e/ou preconceituosos não são ‘opiniões’, mas agressões a grupos sociais (além de eventuais indivíduos.)  Isso não se resolve em discussões de facebook, mas nos parlamentos de cada país.

Mas, enfim, voltando à lista inicial de 11 querelas.

Dificilmente encontraremos em nossos grupos de convívio (digamos 200 a 300 pessoas) duas que pensem exatamente o mesmo sobre cada uma delas.

Mas poderemos reconhecer que há um certo padrão: há uma crescente resistência, que não é ideológica, aos discursos que pareçam “politicamente corretos”.

E isso pode ser bom. Lembra a resistência no passado às sufragistas e aos ambientalistas.

Redação

Redação

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  • Tem que distinguir o PC do

    Tem que distinguir o PC do políticamente correto que é basicamente isso mesmo baseado no contexto dos direitos humanos com consciência da democracia e da república (até os auxílios moradia para juízes se motram politicamente inviáveis), e o "PC" do Controle Partidário que é a regulação da linguagem para favorecer uma narrativa (como na manipulação midiática contra os inimigos), o "CP" é anti-pc para praticar o enviesamento. A diferença entre o socialismo e o liberalismo aparece na visão da necessidade das regulações.

    O anti-islã é o conservadorismo disputando o mesmo espaço entre religiões, ao contrário do anti-conservadorismo em geral.

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