Um burro em Davos, por Fernando Horta

Um burro em Davos, por Fernando Horta

Num dos esforços de melhorar as relações entre os países da América do Sul, durante ainda a segunda guerra mundial, os EUA por meio de Walt Disney, criou um personagem para dialogar com o rato mais famoso do estúdio. Zé Carioca (Joe Carioca em inglês) aparece em 1942 num filme ao lado do Pato Donald, chamado “Saludos Amigos”. O Brasil de Zé Carioca é um Brasil com “belezas naturais”, “florestas”, “praias” e com um “povo hospitaleiro” disposto a “receber” outros povos da América numa desesperada busca por modernização econômica. O Brasil de Zé Carioca oferecia apenas entretenimento e oportunidades econômicas. Era “faceiro”, “falastrão” e “boa gente”, mas carecia de qualquer capacidade civilizatória que tivesse valor na metade do século XX. O Brasil vivia o processo de urbanização e Zé Carioca mostrava o estereótipo do “malandro carioca”, num modo de vida em franco mal-estar com trabalho ou produção econômica. Enquanto Donald é um determinado e turrão pato, Zé Carioca mostrava-se ao avesso de qualquer noção de “hard working”, vivendo da barganha individual e do extrativismo urbano de vantagens que o “malandro” podia obter.

É a noção mais eloquente do Brasil à venda; do Brasil como terra de “oportunidades” ao dinheiro estrangeiro. Oportunidades normalmente não industriais, mas voltadas ao entendimento que até então se tinha do país: o local do exótico e do selvagem.

Zé Carioca era o modelo mais bem acabado do Brasil do “baticundum”. Até o burro Jair, em Davos.

Muito menos falante que Zé Carioca, sem qualquer carisma ou capacidade de comunicação, Jair retomou o estereótipo do Brasil opulento por suas “belezas naturais”, e carente de valores civilizados. Sem a capacidade de formular quaisquer pensamentos mais profundos, ou mesmo de dar indicações precisas de suas ideias, Jair Bolsonaro falou menos do que o entrevistador que tinha a triste missão de arrancar algo inteligente do presidente brasileiro. Em pouco mais de seis minutos de fala titubeante, desconexa, empiricamente mal formulada e totalmente frustrante, Bolsonaro falou mal do “bolivarianismo”, dos “governos anteriores”, do “viés ideológico” e hipotecou o Brasil de mais formas do que QUALQUER governo anterior.

Na fala de Bolsonaro, o Brasil é uma terra-arrasada precisando de ajuda. E para isto não apenas ele oferece nossa “opulência”, como promete “privatizar” e oferecer “oportunidades de negócios”. Nem a Cuba de Fulgêncio Batista, antes da revolução, era pintada de uma forma tão subalterna, insossa e desesperada por capital estrangeiro. Bolsonaro precisou ser lembrado, diversas vezes, pelo entrevistador de que o Brasil é a oitava economia do mundo (já foi a sexta, nos tempos de Lula), e que deveria ter algo a mais a oferecer do que “diminuir o Estado”. O sonho de Bolsonaro, contudo, é que o Brasil se torne “um dos 50 melhores países do mundo para fazer negócios”.

A revista Forbes organiza uma lista de “best countries to do business”, anualmente, baseados em entrevistas com empresários e alguns indicadores capitalistas (como inflação, renda per capita, PIB e etc.). Entre os cincoenta primeiros na lista estão a Lituânia, a Estônia, o Chipre, a Mauritânia e a Costa Rica, por exemplo. O Brasil figura na posição 73 da lista, e o sonho do atual mandatário do país é subir 23 posições na lista da revista americana.

Bolsonaro aceitou, sem qualquer reserva ou questionamento, o rótulo para o Brasil de “país corrupto”. Aceitou a ideia de que precisamos dar algo para a comunidade internacional (reformas) para dela obter “confiança” e “investimento”. Bolsonaro só não aceitou o termo “direitos humanos”, transformados na fala dele em “verdadeiros direitos humanos”. Também não aceitou a noção de que precisamos preservar nosso meio ambiente e nossa diversidade. Para Bolsonaro, agrobusiness e meio ambiente “precisam andar juntos”. “Nem pra lá, nem pra cá”, disse o empossado, num luminar momento de concatenação de duas ideias ao mesmo tempo. Foi o máximo que o entrevistador conseguiu tirar do burro que hoje ocupa o Palácio do Planalto.

Bolsonaro não falou da Embraer e nossa tecnologia de ponta em indústria aeronáutica, não falou da Petrobrás e nossas tecnologias para descoberta e extração de petróleo, não falou das nossas pesquisas sobre revitalização de biomas (como o Cerrado), não falou do esforço para fazer crescer o valor agregado de nossas mercadorias. Bolsonaro falou do Brasil já sem as áreas que ele pretende vender. E isto significa voltar ao Brasil do Zé Carioca. Um país suplicante, mendigo e submisso, culpando-se por não poder ser mais espoliado pelo capital estrangeiro. Um país que tem vergonha de si, vergonha de não ser uma potência urbana, quem sabe branca e rica.

O discurso de Bolsonaro teria envergonhado TODOS os ditadores militares de Castelo Branco a Médici. Falando em um tom monocórdico de aluno recém alfabetizado, o burrito Jair repetia os nomes dos ministros Guedes, Moro e “Ernesto” como se aos olhos do mundo eles fossem fiadores da capacidade que Bolsonaro não tem. O entrevistador envergonhado termina o suplício da fala de Bolsonaro, e quem assistiu fica com saudade do Zé Carioca. O papagaio da Disney nos vendia por um preço melhor, com maior conhecimento e eloquência do que o burrito Jair. E ainda ouvíamos Aquarela do Brasil sem bater continência para bandeira norte-americana …

Fernando Horta

Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.

Fernando Horta

Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.

View Comments

  • Um discurso à altura!

    Fernando Horta, você sintetizou o sentimento que imagino a maioria dentre nos aqui sentiu ao ver o discurso de Bolsonaro. Outro dia, o Alfredo dizia da vergonha que seria ver o Bolsonaro discursando em Davos. Eu comentei que deveria ter uma equipe no minimo competente para tal. Esqueci de que barnabés - pessoas sem visão e entedimento - não são capazes de entender um belo discurso e estão distante de qualquer leitura mais fina sobre o mundo que o cerca. O que o Brasil tem para oferecer hoje através do palhaço que o representa é isso: mal estar e sorrisos amarelos entre a plateia. 

  • Um caipira em Bariloche

    Há um outro paradigma para bolsonaro. Nos tempos em que Bariloche era chic, o famoso Amacio mazzaropi, nosso querido comediante que personificava o Jeca. Se ele nos trazia alegria , esse jeca de hoje só nos tráz angústia e apreensão

  • Não é justo com o burro ( o

    Não é justo com o burro ( o animal). Os burros não são portadores de maldade. Seria mais justo qualificá-lo de humano com menos de dois neurônios. Ainda sou otimista: o Brasil jamais elegerá outro presidente tão estúpido quanto Bolsonaro.

  • Um discurso e um presidente a

    Um discurso e um presidente a altura de seus eleitores, esses uma cambada de asnos.

    É bom tirar print screens da militância de seus eleitores para breve futuro de tripudiação e escárnio.

    • Além disso, o Bóson de Higgs

      Além disso, o Bóson de Higgs conseguiu provar uma tese antiga:

      "... qualquer governo, por pior que tenha sido constituído, pode durar um, dois ou três dias; um desafio muito maior do que criar um determinado governo é preservá-lo." (Política, Aristóteles, Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 226)

  • tsc tsc

    oi constrangedor até para ele que teve que fazer aquele papel medíocre, imagina então para mim que sou o representado (embora não quisesse)?!!

  • ONU.

    Caso o Bozo consiga chegar o fim de 2019 como presidente, vcs já pensaram como vai ser o discurso dele na abertura da Assembleia Geral da ONU? Já imaginava que seria dose, mas, a partir do que aconteceu em Davos, acho que será catastrófico!

  • Brasil, o paraíso sexual
    Para os estrangeiros.
    A visão dele é futurista, traduzindo suas palavras:
    - transformarei este país em terra arrasada de tal forma que, com o câmbio depreciado e sem nenhum porvir ao povo, ele se tornará o paraíso sexual dos estrangeiros! Glória a Deus! Ô Glória!
    Para os brasileiros será cada vez mais um inferno.

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