Vencer o Jair não basta I – o mito tem pés de barro, por Márcio Venciguerra

Vencer o Jair não basta I –  o mito tem pés de barro

por Márcio Venciguerra

Uma semana depois, a facada em Jair Bolsonaro já deve ser vista em perspectiva, além do fato, por conta de suas consequências. Defensores da paz não se limitam a repudiar qualquer agressão física, mas também cuidam de evitar que um crime seja o estopim de uma bomba maior.

Adolf Hitler e George Bush, por exemplo, usaram a repercussão de atentados para levar seus países à guerra. Apesar do pouco efeito do crime nas pesquisas de opinião, a chance de tragédia não está afastada, por causa do efeito cumulativo dos fatos. Uma onda de choque eleva a segunda, que torna a terceira ainda mais alta.

A primeira tentativa de matar judeus em massa, por exemplo, falhou porque o povo alemão ainda não era raivoso e amedrontado o suficiente para engolir a propaganda. Já a segunda resultou na noite dos cristais, quando começaram os milhares de linchamentos, seguidos pela máquina de extermínio metódica.

Jair é a soma de todos os medos. Um nazista crente patriarcal. Ele usava o velho bordão nazista na propaganda de TV. Só que, ao invés de um “Alemanha acima de tudo” puro e simples, ele tinha de complicar. Dizia que Deus estava acima de o “Brasil acima de tudo”. Enfim, Deus não é tudo, como considerava Espinosa, está acima do tudo. Com Jair falando ficava ainda mais confuso.

E, para encerejar o bolo, na história da política brasileira, o Jair é o que mais incorporou a insanidade do ideal “estupra, mas não mata” malufista. Não por ter dito uma coisa besta sem querer, mas por empenho em reunir todos os militantes patriarcais que pode.

A coisa parece ter saído da série de TV O Conto da Aia, cuja segunda temporada acaba de entrar em cartaz. Na tela, os Estados Unidos sofrem um golpe de Estado sangrento por uma milícia fundamentalista, que só aconteceu por causa de uma onda de paranoia gerada por atentados. Logo, Boston passa a ter as mazelas típicas das sociedades patriarcais opressoras mais ranhetas: mutilação genital feminina, casamento infantil arranjado, muita pena de morte etc.

Como o sonho de uns é o pesadelo de outros, ao se municiar de ideais tão fortes, a candidatura do Jair fica frágil. Afinal, pouca gente aceita essa utopia. Se o machismo já soa desagradável, o patriarcado fundamentalista é aterrador porque acaba com uma das poucas alegrias da vida adulta: namorar.

Apaixonar-se é praticamente uma psicose benigna, que passa, mas causa (como diriam @s jovens). Tem sintomas semelhantes ao delírio: comportamento compulsivo (como verificar várias vezes se tem mensagem no celular) e o pensamento recorrente (@ menin@ veneno que não sai da cabeça).

Doidera boa, não? Mas numa sociedade patriarcal, o enredo tem um final de Romeu e Julieta.

Por ser contra o amor, o tal mito do Jair exibe uns pés de barro frágeis, iguais aos do ídolo lendário de Nabucodonosor da Babilónia. Assusta, mas basta uma pedra para derrubar a estátua feita de ouro, prata, bronze, ferro e pés de barro. Tudo que está em cima, de “Brasil acima de tudo” ao porte arma liberado, cai por terra quando se acerta a base machista.

Neste contexto de eleição é sempre bom lembrar o quanto Aécio Neves sofreu na campanha de 2014, depois de se dirigir ao povo com a arcaica expressão dita nos debates: “o trabalhador e a dona de casa”. Mais do que um aproveitador de aeroportos, Aécio perdeu porque demonstrou ser uma pessoa vivendo no passado. (Talvez de antes de 1906, ano em que a cocaína foi retirada da fórmula da coca-cola).

O confronto do ponto de vista do machismo pode ter um efeito mais rápido neste momento de campanha, porém, é preciso ter claramente que estamos em meio a um conflito tanto secular quanto milenar. Além de usar esse enfoque agora, não é possível pensar em tirar o pé do acelerador quando a eleição passar.

Machos BrutosUma das boas notícias é que o patriarcado só é defendido por radicais reunidos na forma de seitas, muito difíceis de serem formadas. Como nos conta a antropóloga Peggy Reeves Sandy, os garotos se apaixonam e têm grande prazer em conquistar a atenção de uma moça. Para torná-los imunes ao interesse feminino é preciso um certo esforço.

Segundo Peggy, há a necessidade de uma organização sólida, atrelada a uma narrativa simbólica elaborada, para formar as quadrilhas de estupradores que ela estudou para escrever o livro Fraternity Gangs Rape (Gangues de estupradores universitários). Peggy tratou antes da cosmologia do mito da criação, seguindo a velha tradição acadêmica de diferenciar as sociedades que acreditam no deus criador masculino, normalmente um espírito mágico dos céus, ou numa deusa mãe, que dá à luz ao mundo. As culturas do deus homem são sempre mais machistas e guerreiras.

Não é necessário, porém, uma mitologia tão pomposa a ponto de ser a base de muitas religiões. Os bandos especializados em bebedeiras e curras nas universidades norte-americanas consomem regularmente a moda dos vídeos de estupro, muitas vezes juntos e bebendo muito. Essa mistura gera uma visão distorcida da realidade, reforçada pelo sucesso da ação em festas regadas a boa noite cinderela, que leva à célula patriarcal. Pela internet, as células se unem para se tornar um movimento.

Para quem tem curiosidade de saber do que se trata esses vídeos, basta entrar no site pornográfico de sua preferência, tirar da busca “as aventuras de um limpador de piscina” e escrever “gang bang”. E terá saudade do pornô romântico do século passado.

Além dos vídeos, há também uma linha auxiliar formada por memes, piadinhas toscas e trilha sonora, como o funk “Só Surubinha de Leve”, do MC Diguinho – retirado do Spotify em 2017, após uma campanha nas redes sociais. Os estupros coletivos recentes no Brasil também existem na esteira dos vídeos de gang bang e da valorização dos jovens criminosos.

 

Pechincha patriarcal – A lógica da existência desses grupos de jovens estupradores é a mesma do patriarcalismo tradicional, associado à religião e à tradição greco-romana. Uma sociedade patriarcal elimina as incertezas do namoro, de saber se vai ou não ser aceito mesmo após muito empenho. Custa caro passar horas caprichando na carta de amor, compor canção, jantar romântico etc. Tudo para ser trocado por um gringo bacana de Bariloche. Com o casamento arranjado se resolve mais fácil. Basta ser rico ou bajulador.

Além de não serem obrigados a rebaixar-se a seduzir as mulheres para levá-las para a cama ou ao altar, os monoteístas ranhetas não precisam conquistar a admiração nem mesmo dentro da própria casa. A mulher deve obediência cega, já o marido, não. Aliás, quem busca aprovação em casa não é apenas um bestalhão. Veja o conselho do califa Omar Ibn El Khattab: “discorde de suas mulheres e não faça o que elas pedem. Assim você será abençoado. Porque é dito: ‘consulte-as, depois aja de outro modo’.”

Mesmo com um custo maior de força bruta e aquela velha chance de ter o futuro de quem vive pela espada, a estratégia de alianças masculinas é eficiente para formar confrarias de irmãos de armas, como as concentrações de apoiadores do Jair. (É importante notar que são grupos pequenos, reunindo a militância mais fascista. Se fossem só eles, seria um problema bem menor).

A explicação predominante sobre essas reuniões em torno do candidato, que parecem tubarões em frenesi alimentar, hoje é muito influenciada por Freud, para quem comunidades artificiais (como as associações militares e esportivas) estão baseadas em impulsos homossexuais. Creio que é um erro, tal qual pensar que energia sobrando é canalizada para a sexualidade, quando é óbvio que ela vira gordura.

Vendo por esse prisma, não se trata de dizer que esse pessoal do Jair precisa se assumir, sair do armário ou coisa semelhante. Assim como o estupro não tem nada a ver com desejo sexual, o fervor do rebanho também tem a ver com poder. Parece difícil romper esses elos, mas, como veremos na segunda parte desta série de artigos, uma das respostas pode ser mostrar a eles o que estão perdendo. O mundo dos homens é tão feliz e próspero quanto o das cabras fêmeas e os bodes. Vamos viver pastando.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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