A dificuldade em captar a voz das ruas

É curiosa e assustadora a incapacidade dos partidos políticos brasileiros de intuírem os novos tempos. Nem mesmo quando os novos tempos aparecem de frente, mortais e fulgurantes como um iceberg gigante.

A Constituição de 1988 consagrou – no papel – formas expressivas de participação popular por meio das Conferências Nacionais, do modelo SUS (Sistema Único de Saúde) e outros estatutos de cidadania.

Os primeiros anos da Nova República foram tomados pelo fantasma da hiperinflação. Mesmo assim, houve respiros de organização na sociedade civil, gradativamente bebendo os ares democratizantes e se organizando.

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Fernando Collor foi o primeiro a intuir os novos tempos, de descentralização, abertura para o exterior, manifestação dos “descamisados”. Mas, com seu voluntarismo, foi um desastre político.

Já Fernando Henrique Cardoso pegou a bandeira da estabilidade econômica. O Plano Real empalmou de tal maneira as aspirações nacionais do momento, que a oposição não conseguiu encontrar um discurso minimamente eficiente.

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A insensibilidade social de FHC – mais os erros de gestão na questão energética – abriram espaço para o novo discurso, calcado no social e na inclusão. Lula foi eleito sob essa bandeira e consolidou-a com a universalização dos programas sociais.

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Nesse ínterim, a sociedade civil foi ganhando cada vez mais consistência, agora impulsionada pelo fenômeno das redes sociais. Desde os anos 90, movimentos sociais ganharam força com a Internet. Nos anos 2010, foi a vez da classe média se mostrar participante.

Desde o advento da chamada nova classe C, discute-se nos dois lados – PT e PSDB  – o próximo tempo do jogo. Ao construir o mercado de consumo de massa, o lulismo definiu o jogo e o vencedor dessa etapa. Mas abriu as portas para a segunda etapa, um novo quadro político radicalmente diferente do anterior.

Esta é a riqueza dos processos sociais e econômicos. Há milhões de excluídos. Montam-se programas de inclusão. Incluídos, os novos cidadãos não tem a mesma natureza do pré-inclusão. Tornar-se-ão cada vez mais exigentes, cada vez mais ansiosos por democracia – isto é, pela participação nos destinos do país. Ora, essa é a dinâmica histórica das democracias.

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As manifestações de junho deixaram esse quadro bem à mostra. Mas todos – repito TODOS – os atores políticos, da presidência aos pré-candidatos, reduziram as manifestações meramente à questão da mobilidade e da qualidade dos serviços públicos.

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É muito mais que isso.

No governo Lula houve alguns ensaios de participação popular ou participação qualificada.

Esse novo modelo – aberto (ainda que de forma limitada) à colaboração externa – tornou obsoletas as políticas de gabinete praticadas na imensa maioria da administração pública.

Mas não se avançou. Houve um refluxo no governo federal e nenhum avanço nos governos estaduais. Além de Dilma Rousseff, nenhum dos pré-candidatos – Aécio Neves, Eduardo Campos ou Marina Silva – entendeu a nova voz das ruas e das redes sociais.

Não se quer apenas mais ônibus; o que se quer é participação.

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • manifestaçoes...

    Creio que ainda se empresta às manifestaçoes mais glamour que densidade.

    Todos analistas anida tentam advinhar o que ocorreu, como e já apontam para direçoes

    que o movimento sequer conhece.

    As pessoas de partidos, governos, empresas não são tão diferentes das que estavam nas ruas.

    O que houve de diferente foi a geração que esteve nas ruas pois ja tivemos movimentaçoes

    mais vigorosas nas diretas ja, na nao eleição de Lula de 1989 e no Fora Collor.

    Cartazes como os apresentados nao sao propostas concretas, sao exemplos de queixas individuais, não organizadas.

    A maioria esmagadora nao participa nem de blocos de carnaval, de reunião de condomínio. Quem dera de ong, associaçoes, sindicatos, etc

    Não têm ideia do que seja atuar de forma organizada, do que é apresentar propostas, defender, aceitar

    resultados adversos, enfim fazer politica.

    Ir para rua foi ir num show, um programa a mais...Passou!

    Podem ate voltar em menor número como já se vê! Entretanto impacto disso é infimo.

    Ficaram Black Blocs, Midia Ninja, Fora do Eixo(em desmanche) e um monte de gente tentando criar teses...Enfim o papel aguenta tudo.

     

     

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