A plutocracia não cabe no Orçamento, por Laura Carvalho

Jornal GGN – Laura Carvalho, professora da FEA-USP, afirma que o pacto social que deu origem à Constituição de 1988 não foi desfeito e que há uma demanda de grande parte da população por melhorias nos serviços públicos universais, e não pela redução na sua prestação. Por outro lado, o governo interino de Michel Temer e seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, indicam outro caminho, principalmente com a previsão que as despesas primárias do governo passem a ser reajustadas apenas pela inflação do ano anterior. 

Se essa regra já estivesse em vigor, as despesas com saúde teriam sido reduzidas em 32% e os gastos com educação em 70% em 2015.Ela afirma que “as propostas do governo interino não incluem nenhum imposto a mais para os mais ricos, mas preveem muitos direitos a menos para os demais”, apontando que o Poder Judiciário conseguiu um reajuste, mas que a previdência para os trabalhadores rurais é “tratada como rombo”.

“Essas escolhas estão sendo feitas por um governo que não teve de passar pelo debate democrático que só um processo de eleições diretas pode proporcionar”, conclui. Leia a coluna abaixo:

Da Folha

Laura Carvalho
No levantamento realizado pelos pesquisadores Pablo Ortellado, Esther Solano e Lucia Nader na avenida Paulista durante as manifestações pró-impeachment do dia 16 de agosto de 2015, dois temas chamaram a atenção. Entre os manifestantes, 97% concordaram total ou parcialmente que os serviços públicos de saúde devem ser universais, e 96%, que devem ser gratuitos. Já sobre a universalidade e a gratuidade da educação, o apoio foi de 98% e 97% dos manifestantes, respectivamente. “Isso é um resquício de junho de 2013”, afirmou Pablo Ortellado a uma reportagem do jornal “El País” de 18 de agosto de 2015.
O resultado deste tipo de levantamento, quando somado aos resultados nas urnas das últimas quatro eleições presidenciais, sugere que o pacto social que deu origem à Constituição de 1988 não foi desfeito. Ao contrário, as demandas nas ruas desde 2013 e nas ocupações das escolas desde 2015 têm sido por melhorias nos serviços públicos universais, e não pela redução na sua prestação.
A regra Temer-Meirelles prevê que as despesas primárias do governo federal passem a ser reajustadas apenas pela inflação do ano anterior. Se vigorasse no ano passado, e outros gastos não sofressem redução real, as despesas com saúde teriam sido reduzidas em 32% e os gastos com educação em 70% em 2015.
Pior. Se o PIB brasileiro crescer nos próximos 20 anos no ritmo dos anos 1980 e 1990, passaríamos de um percentual de gastos públicos em relação ao PIB da ordem de 40% para 25%, patamar semelhante ao verificado em Burkina Faso ou no Afeganistão. E, se crescêssemos às taxas mais altas que vigoraram nos anos 2000, o percentual seria ainda menor, da ordem de 19%, o que nos aproximaria de países como o Camboja e Camarões.
“A Constituição não cabe no Orçamento”, argumentam seus defensores, na tentativa de transformar em técnica uma decisão que deveria ser democrática. De fato, há uma contradição evidente entre desejar a qualidade dos serviços públicos da Dinamarca e pagar impostos da Guiné Equatorial.
O que esquecem de ressaltar é que os que pagam mais impostos no Brasil são os que têm menos condições de pagá-los. Se os que ganham mais de 160 salários mínimos por mês têm 65,8% de seus rendimentos isentos de tributação pela Receita Federal, fica um pouco mais difícil determinar o que cabe e o que não cabe no Orçamento.
O fato é que as propostas do governo interino não incluem nenhum imposto a mais para os mais ricos, mas preveem muitos direitos a menos para os demais.
Os magistrados conseguem reajuste de seus supersalários, mas a aposentadoria para os trabalhadores rurais é tratada como rombo.
A cultura, a ciência e a tecnologia ou o combate a desigualdades deixam de ser importantes. O pagamento de juros escorchantes sobre a dívida pública não é sequer discutido, mas as despesas com os sistemas de saúde e educação são tratadas como responsáveis pela falta de margem de manobra para a política fiscal.
Essas escolhas estão sendo feitas por um governo que não teve de passar pelo debate democrático que só um processo de eleições diretas pode proporcionar. A democracia caberia no Orçamento. O que parece não caber é a nossa plutocracia oligárquica.
Redação

Redação

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  • Como sempre, um ótimo artigo

    Como sempre, um ótimo artigo da Laura. Ler os comentários ao artigo na Folha ao artigo na Folha. Incrível a dificuldade dos coxinhas com a aritmética.

    • Algo deu errado no copiar e

      Algo deu errado no copiar e colar. O correto é: Como sempre, um ótimo artigo da Laura. Ler os comentários ao artigo na Folha é chocante. Incrível a dificuldade dos coxinhas com a aritmética.

  • Na verdade, o que a sociedade

    Na verdade, o que a sociedade quer são serviços de qualidade, incluindo saúde e educação, em nenhum momento a sociedade demanda que essas despesas tenham um percentual fixo em relação ao PIB. Tanto que saúde e educação estão em estado lamentável, mesmo havendo vinculação de receitas. A Laura Carvalho tem uma ideia antiquada em economia, mesmo que extremamente charmosa.

  • Se o problema é da constituição...

    Se o problema é da constituição de 1988, poderíamos incluir um artigo: Todos os brasileiros são obrigados a ser ricos e felizes. Isso resolveria nossos problemas.

  • Disputa pelo orçamento

    "Os que mais pagam impostos no Brasil são os que tem menos condições de pagá-los". Infelizmente a propaganda dos ricos é que os brasileiros pagam muito impostos. Ora nós os pobres pagamos muito impostos. Ricos e muitos ricos praticamente não pagam impostos no Brasil. A disputa pelo orçamento e pela política tributária é expressão direta da luta de classes. 

  • A análise não cabe na realidade

    A Laura Carvalho que me desculpe, mas o artigo dela expressa mais desejo que análise.

    A proposição base de que "o pacto social que deu origem à Constituição de 1988 não foi desfeito" é, na verdade, altamente questionável.

    A fundamentação que ela usa para escorar essa proposição como pacífica também parece não se sustentar.

    Em um artigo que publiquei há quase três meses, eu observava:

    "Nas manifestações de agosto passado em São Paulo, uma equipe de pesquisadores pretendeu ver traços de uma defesa do bem-estar social nas respostas a favor do ensino e saúde públicas à sua entrevista, por parte de alguns participantes de classe media. Essa interpretação ligeira acaba incidindo em uma desonestidade etnográfica, pois se abstrai do contexto e absolutiza o enunciado. Quando a classe média no Brasil defende os serviços públicos, ela está, na realidade, defendendo seu privilegio de ser servida, em especial no que respeita à universidade pública. Quando se começa a demonizar os impostos, a lógica predatória é a mesma. É a linguagem do privilegio que está operando sua gramática simbólica." ( El día en el que la derecha ganó la calle).

    Por isso eu acho que há muito mais a se explorar quanto à dimensão e ao alcance do esfacelamento institucional e político que estamos vivendo. Muitas pessoas estão em busca de tábuas de salvação, não importa a qualidade delas. Vai ser preciso bem mais coragem e desprendimento intelectual para sermos capazes de entender o fundo do poço a que chegamos.

    A meu ver, esse fundo do poço foi configurado pela potencialização selvagem da lógica do privilégio, sob o contexto de um individualismo predatório movido pela absolutização do consumo como medida de "bem estar". Minha suspeita é de que simplesmente foi o conjunto de valores do lulismo que engendrou seu próprio colapso, o colapso a que agora chegamos. Parece-me ilusório supor que o pacto social que deu origem à Constituição de 88 ainda esteja de pé.

    É isso que, no fundo, significa o fim da Nova República, o fim dos anseios cidadãos (que é a precedência do público sobre a simples lógica das "oportunidades" -- individuais). O que lhe substitui é a dura lei da selva de uma sociedade que nunca deixou de ser oligárquica e senhorial. Uma realidade que apenas se quis maquiar e tapar com a peneira.

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