Categories: Política

É preciso marcar a diferença entre descontentamento e pauta

Por Monica Loyola Stival

Do descontentamento à pauta: pelo elogio da política

Monica Loyola Stival

Não pretendo aqui explicar, em sua complexidade, os eventos que se produziram no Brasil nesse último mês de junho. Proponho analisar esses acontecimentos recentes com outro fim. Quero pensar mais nas análises do que nos eventos. Quero pensar sobre o sentido político de dois termos bastante mobilizados nas análises de compreensão e explicação desses eventos, assim como nas próprias falas manifestadas pelo país em cartazes ou textos de opinião. Trata-se das noções de “descontentamento geral” e de “pautas dispersas”. Acredito que é preciso marcar a diferença entre descontentamento e pauta, o que deve permitir a construção do problema da posição política, do horizonte político. Minha intenção é sugerir ainda que uma organização democrática se define pela possibilidade de sedimentar institucionalmente as demandas sociais que exprimem insatisfações cotidianas.

A redução ou anulação da tarifa de transporte é uma pauta que pode se formular a partir do descontentamento com a chamada mobilidade urbana – com o alto custo e com as péssimas condições do transporte, com o tempo absurdamente gasto para o deslocamento. Estar descontente com a corrupção não é uma pauta. Significa compreender os efeitos (e princípios) nefastos que a corrupção gera em um país. No mesmo sentido, o anticapitalismo não é uma pauta, é o descontentamento com o modelo de organização econômica e social de nossa vida dita moderna. Nenhuma ação política de curto prazo responde à corrupção ou ao capitalismo. Ao contrário, inúmeras ações políticas podem responder, no curto e no médio prazo, à questão do transporte, ou à desmilitarização da polícia militar, cujo descontentamento de base deve-se à violência institucionalizada que essa esfera do Estado imprime contra parte da população. Enfim, um descontentamento pode gerar ou não uma pauta concreta, e isso significa passar da dimensão de certa psicologia social à política.

A política é justamente o processo de elaboração de pautas, de reivindicações nascidas a partir dos mais variados graus de desconforto ou inquietude. A violência policial institucionalizada atinge muitas pessoas de modo tão irremediável que as palavras “desconforto” ou “descontentamento” soam ridiculamente fracas. A chacina na favela da Maré assegura essa permissividade letal da instituição militar, que pouco tem a ver com o modo civil e democrático que se tem no horizonte – e no discurso – de boa parte da política institucional brasileira. A recusa da corrupção, da violência policial, do capitalismo, etc., a recusa que é a primeira forma de manifestação de descontentamento não é ainda, pelo menos não imediatamente, política. É preciso certa formulação coletiva de um horizonte para que se passe da psicologia social à política. Inclusive, ou sobretudo, quando o descontentamento diz respeito à própria política. Claro, não era esse sentido institucional partidário que eu dava ao termo até aqui. Até então, “política” era um termo para qualificar o modo de manifestação e formulação de expectativa de um descontentamento. Já a política que muitos pretendem recusar hoje é o modo atual de organização partidária e institucional. Essa recusa formula-se como pauta política na forma da reivindicação por uma reforma política ou por uma mudança de comportamento dos partidos, por exemplo.

Qual o interesse dessa passagem? Por que passar da simples manifestação de desconforto à recusa, e desta à formulação de pauta? Ou seja, qual o valor (não há necessidade nenhuma nisso) da passagem do sentimento à contraposição ao dado, e desta contraposição à formulação de um horizonte? Quando Foucault faz o elogio da vontade coletiva que ele vê emergir no Irã, em 1978, ele nota que a insatisfação com o modelo econômico e social (corrupto, diga-se de passagem) que o Xá representa levou à recusa desse governo. Entretanto, a análise que se restringe a notar o motivo do descontentamento e a elogiar a recusa, que ele chama de atitude crítica, não poderia, creio, abster-se da formulação de um horizonte. Afinal, o discurso que analisa participa, em maior ou menor grau, da formulação de uma pauta política. Pauta que, no caso dos iranianos, sempre foi por um governo islâmico. A recusa não pretendia reformular esse aspecto da vida social dos iranianos, ao contrário do que Foucault acreditava, supondo que a recusa do governo significava imediatamente a recusa do modo de existência, da subjetividade atual. Este exemplo serve para ilustrar o interesse da passagem da recusa à política, em sentido positivo, propositivo.

É essa formulação política que se disputa de diversas maneiras. O movimento social que trouxe às ruas as primeiras manifestações, o MPL, colocou-se nessa disputa defendendo a clareza da pauta, única e concreta, da redução da tarifa, sem, entretanto, deixar de disputar politicamente um horizonte mais amplo, de tarifa zero. O descontentamento com a estrutura política atual pode ser disputado pela esquerda com a formulação de uma pauta que se defina como reivindicação de uma reforma política, e pela direita com uma pauta de queda do governo atual. A pauta pode ser então, respectivamente, a reorganização institucional ou a troca dos membros da instituição atual. Assim, o suposto consenso de fundo quanto ao descontentamento dissolve-se na passagem do desconforto à pauta, e por isso há esquerda e direita, por isso há necessidade de politizar as manifestações de angústia e de recusa, no próprio movimento e nas análises.

As análises de compreensão e explicação das manifestações que tomaram as ruas brasileiras nesse mês de junho são parte dessa politização – no melhor sentido possível – das angústias da população. Angústias que não são as mesmas em diferentes grupos sociais, que aparecem às vezes em diversos desses grupos, mas com graus diferentes, porém, o mais importante, são angústias ou descontentamentos que geram pautas distintas. Por isso, dizer generalidades tais como relegar o descontentamento “geral”, certo sofrimento social, a uma recusa do capitalismo, é abster-se da política, no sentido democrático. Afinal, mais importante que a recusa é a instituição, no sentido de que a irrupção é efêmera e seus efeitos, duradouros. São esses efeitos que serão responsáveis pela satisfação ou pelo sofrimento na vida cotidiana que, mais cedo ou mais tarde, vai se sedimentar em uma organização estável.

Creio que incluir a corrupção, a violência policial, o transporte caro e ineficiente e outras mazelas da vida social na conta do capitalismo, de modo a fazer de seu fim a pauta política, é perder a oportunidade de colocar esse mesmo capitalismo em xeque, sedimentando outro modelo de política institucional e partidária, outra organização da polícia, outro modelo de cidade. Creio que a disputa pontual (“local”, se preferirem) é a maneira política de sedimentar democraticamente mudanças que respondam ao descontentamento cotidiano – que não é geral, nem disperso, mas diz respeito a muitas facetas da vida social. Não se trata de reformismo, mas de política – esse processo que necessita o nosso elogio, e não a ironia imobilizadora que dissolve cada luta específica em um amontoado de nãos sem saída.

Luis Nassif

Luis Nassif

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