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Os clássicos de 2008 – 1

A crise internacional implodiu conceitos, análises, prognósticos, e abriu espaço para besteirol poucas vezes visto no país.

Na eleição dos episódios sub-intelectuais mais significativos de 2008, meu voto vai para o artigo de Demétrio Magnolli “Lehman Brothers, Marx & Sons”, publicado no Estadão e no Globo.

Merece um repeteco, por ser a maior comprovação de que, para atender à demanda de mercado por “neocons”, a primeira regra é: seja tosco e deturpe conceitos até o limite da baboseira.

Quando o Lehman Brothers entrou em bancarrota, provocando a implosão de Wall Street, os filhos órfãos de Karl Marx começaram a disseminar uma narrativa ideológica da crise que é tão desonesta quanto reacionária. Essencialmente, eles dizem que o neoliberalismo faliu e que a causa da catástrofe é a desregulamentação do mercado financeiro. Neste mantra, convertido em senso comum, uma mentira factual fica protegida atrás da paliçada conceitual de uma fraude.

A não ser que exclua o presidente da França, da Alemanha, o presidente do Banco Central Europeu e a torcida do Flamengo dessa categoria, sua afirmação é uma tolice enfática.

O neoliberalismo não faliu porque não existe. A fraude conceitual ampara-se no ocultamento dos dados empíricos. Nos anos 20, tempos do liberalismo, os gastos públicos sociais nos EUA (pensões, educação, saúde e welfare) não alcançavam 5% do PIB. Depois, com o New Deal e os “30 anos gloriosos” do pós-guerra, criou-se o Estado de Bem-Estar e os gastos sociais cresceram até perto da linha de 20% do PIB. Segundo o teorema histórico que emoldura a noção de neoliberalismo, o Estado de Bem-Estar ruiu sob os golpes hayekianos de Ronald Reagan. Mas – surpresa! – os números contam outra história. A “era Reagan” não provocou contração dos gastos sociais, conseguindo apenas estabilizá-los temporariamente. Hoje, eles ultrapassam os 20% do PIB (veja o gráfico no blog  de Gilson Schwartz).

Provavelmente, Gilson preparou o gráfico para mostrar ao Magnolli que – ao contrário do que supõe o geógrafo – o Estado nunca deixou de cumprir seu papel com as políticas sociais. Aí o Magnolli resolveu utilizar o gráfico em proveito próprio, esqueceu que, no primeiro parágrafo, situava as críticas ao neoliberalismo na desregulamentação do mercado financeiro. Ignorou a proliferação dos paraisos fiscais, os fundos offshore, a grita internacional contra as políticas sociais. A coerência dos argumentos não resistiu a dois parágrafos: é um recorde.

O Estado de Bem-Estar é um fruto da democracia de massas. O neoliberalismo só poderia existir com a restauração da democracia restrita dos tempos do liberalismo, quando o direito de voto era privilégio de uma minoria.

De onde tirou isso? O que tem a ver a democracia direta com a desregulamentação do mercado financeiro? Explique o fenômeno Madoff, Lehman Brothers, explique em qualquer categoria de pensamento se enquadram seus colegas do clube da auto-ajuda, quando condenam Bolsa Família, gastos com Previdência Social. Em qual categoria se enquadram os defensores da “lição de casa”, que converteram a política econômica no exercício de gerar superávits para pagar juros.  Uma asneira, à altura do público que pretende atacar: os semi-extintos “filhos de Marx”, personagens criados por ele.

Os filhos de Marx não entendem isso porque hostilizam o princípio democrático, que imaginam representar uma invenção “burguesa”. Eis o motivo pelo qual suas análises econômicas se chocam com os dados empíricos.

Os “filhos de Marx” não fazem a crítica do neoliberalismo, porque, para eles, é apenas uma faceta a mais do capitalismo. A crítica é feita por Krugman, Roubini, aqui no Brasil por Delfim, Bresser, Nakano, Belluzzo.

Na hipótese de desabamento de um viaduto condenado por erros de engenharia, deve-se culpar a lei da gravidade? É algo assim que fazem os filhos de Marx quando atribuem o colapso financeiro a uma combinação de ganância com livre mercado.

O que dizer desse argumento? Até o pai dessa esbórnia, Alan Greenspan, reconheceu que a crise se deveu a essa combinação, em depoimento ao Congresso americano. E vem esse profissional do livro didático atribuir o diagnóstico aos “filhos de Marx”.

A referência à “ganância” nada diz sobre esta crise específica, pois o imperativo do lucro é um traço estrutural da modernidade capitalista, mas diz muito acerca de um pensamento econômico contaminado pelos dogmas do cristianismo medieval. Quanto à desregulamentação, ela só existe no mundo imaginário dos ideólogos.

O mundo está reavaliando esse modelo. Não se discute o lucro, mas uma dinâmica que leva à busca do lucro desmedido, que está na raiz de todas as grandes bolhas especulativas. Mas  o bravo caçador de fantasmas atribui a crítica a esse modelo aos “dogmas do cristianismo medieval”. Em seu artigo , Gilson diz: “Ora, um dos maiores defensores da ação governamental nos mercados foi John Maynard Keynes, que tinha alergia a marxismo e marxistas. Ele revolucionou a teoria econômica há 70 anos, justamente porque soube ir além do maniqueísmo Estado X Mercado”.

O economista Steven Horwitz escreveu uma carta aberta a seus “amigos da esquerda” identificando as diversas regulamentações políticas que incentivaram o tsunami especulativo no mercado imobiliário (o link está no blog de Gilson Schwartz). Ele prova factualmente que o mercado no qual se armou a tragédia nada tem de liberal, articulando-se sobre uma teia de regras, emanadas do Executivo e do Congresso, que pavimentaram o caminho rumo à concessão de empréstimos cada vez mais arriscados. Fannie Mae e Freddie Mac são corporações hipotecárias tecnicamente privadas, mas patrocinadas pelo poder público, que operavam sob garantia de resgate estatal em caso de falência. As agências reguladoras autorizaram-nas, em 1995, a entrar no mercado de subprime e exigiram dos bancos privados um aumento dos empréstimos imobiliários para devedores com poucos recursos.

Nenhuma palavra sobre a desregulamentação pós-crise da Nasdaq, em 2003, unanimemente considerada o ponto de partida para a crise de 2007/2008.

O que espalhou a crise pelo mundo inteiro foi o subprime, um produto financeiro criado em cima de hipotecas. Ele é a bomba criada pela desregulamentação Mas o ex-filho de Marx não veio para explicar, veio para confundir. Além disso, depois de amaldiçoar os tais “filhos de Marx” que atribuem a crise à ganância, o bravo articulista atribui à ganância a crise. E tome falta de lógica.

Para salvar sua narrativa ideológica sobre os mercados desregulamentados os filhos de Marx erguem um Muro de Berlim metodológico entre as esferas da economia e da política. O conservador Horwitz é mais honesto, evidenciando a presença ubíqua da “mão visível” do Estado no financiamento privado do mercado imobiliário americano. Mas a sua honestidade tem limites, definidos por uma perspectiva ideológica. A utopia inviável de Horwitz é um retorno à idade de ouro liberal e ele prefere criticar a “mão visível” democrata à republicana. Por esse motivo, menciona só de passagem a política econômica da “era Bush” e, sobretudo, não a vincula à guerra no Iraque.

Pela primeira vez na história, uma guerra de grandes proporções foi conduzida por um governo que não conclamou os cidadãos a fazerem sacrifícios, mas, explicitamente, a “irem às compras”. A mistura tóxica de juros baixos e cortes de impostos com um déficit orçamentário crescente formou o pano de fundo da ciranda especulativa num mercado intensamente regulamentado. A implosão das altas finanças nos EUA, contagiando os mercados internacionais e anunciando a recessão global, não é obra exclusiva do governo Bush, mas tem as digitais de uma “mão visível” disposta a tudo para assegurar apoio interno à política externa cruzadista dos neoconservadores. A análise econômica reacionária dos filhos de Marx oculta tudo isso.

Lá vem os “filhos de Marx” descendo a ladeira. É uma lógica tão tortuosa quanto a dos blogueiros de Veja.

Neoliberalismo é um signo que adquiriu diferentes significados desde o seu uso inicial, no fim do século 19. A partir das “revoluções” de Reagan e Margaret Thatcher, contudo, sua utilização se disseminou e seu significado deslizou rumo a um colapso. Depois da queda do Muro de Berlim, neoliberalismo sofreu um processo de redução fetichista, convertendo-se em senha de identificação coletiva de uma confraria dos derrotados – algo como um lenço de lapela pelo qual um nostálgico do “socialismo real” reconhece seus iguais. Não há problema nisso, com a condição de que a nostalgia de uma minoria não destrua a capacidade pública de decifrar o sentido das coisas.

Tecla sap, por favor! Pois a profundidade do autor não me permitiu decifrar o sentido das coisas, seja lá o que as coisas forem.

Marx podia estar fundamentalmente errado, mas nunca deixou de buscar as articulações entre economia e política. Seus órfãos, traindo-o, inventaram uma economia “neoliberal” desregulamentada e denunciam uma “contradição” fatal quando os governos “neoliberais” se preparam para estatizar o núcleo do sistema financeiro. Eles não percebem que um padrão de regulamentação está sendo substituído por outro. Nem que a “mão visível” da política está presente nos dois.

Transformar a maior crise desde 1929 em uma mera mudança de “padrão de regulamentação” é demais. Nem os “filhos de Marx” merecem tanta simplificação assim.

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • Acho interessante a maneira
    Acho interessante a maneira como escrevem.
    Todos criam alguma frase de efeito e logo a seguir, viram-se contra os pseudo ex-marxistasorfãosdarevolução.
    Descem o malho e engrenam nova frase embusteira.
    Não há dúvida que cavalgam bem alguns tópicos.
    Mas é só.
    Pois na visão geral, aparecem como cavalgadura dum discurso monocórdico.
    E eles sabem que esse discurso, enfeitado como noiva de baile de feira, rende algum.
    Dá uma certa "fama" e os faz achar-se prestigiados.

  • O que "faliu" o deus-mercado
    O que "faliu" o deus-mercado foi a antiga e tradicional pilantragem. Mas isso o Magnoli não poderia escrever, porque o pessoal que tem o Estadão nas mãos desde a tal "reestruturação" trabalha nesse ramo.

  • O meu voto pra uma pessoa e
    O meu voto pra uma pessoa e pra uma categoria.

    A categoria é,sem dúvida alguma,ECONOMISTAS.

    Por muito tempo estavam perdendo terreno pros ''cientistas políticos''( O QUE É ISSO? )

    Mas numa reviravolta fantástica,os economistas viraram o jogo e ganharam de LAVADA. A bem da verdade são uns ''MÁE DINAH''( sem tirar e nem por)

    Já no sentido individual, o troféu vai pra MANGABEIRA.

    Nassif escreveu sobre um membro da ABL que deu um parecer sobre escrita favorecendo DD( e um outro tinha recusado,mesmo necessitado financeiramentre,a faze-lo)

    São muitos tbm os renomados nomes e seus ''pareceres''.Tipo:A favor ou contra?

    Mas MANGABEIRA ganhou a taça:

    depois de ficar anos( na pgn 2 da FOLHA) MASSACRANDO o governo Lula,virou...virou... virou o que? ''Semi-ministro'' Dele.

    Mangabeira mentiu antes,depois ou continua mentindo?Isso que é sede de poder, hein?

    Ninguém ganha dele.

  • É o texto típico do
    É o texto típico do "jornalismo" neocon:

    O texto com tom agressivo (geralmente com o um apelido jocoso - filhos de Marx) contra quem não pensa como ele;

    Afirmação de que os opositores a suas idéias são teóricos, sem censo prático;

    Por fim, o real não é levado em conta, para que suas teorias se justifiquem.

  • Nassif, na época comecei a
    Nassif, na época comecei a ler esse texto e parei logo no primeiro parágrafo onde diz: "...os filhos órfãos de Karl Marx começaram a disseminar uma narrativa ideológica...". Foi demais pra inicio. Parei.
    Qualquer artigo que começa com esse viés ideológico, ainda mais de quem escreve, é dose querer ler até o final.

    Esse seu comentário foi à época ou é de agora? Não lembro tê-lho visto.
    Agora, ainda bem que vc esclareceu essa frase: "O Estado de Bem-Estar é um fruto da democracia de massas. O neoliberalismo só poderia existir com a restauração da democracia restrita dos tempos do liberalismo, quando o direito de voto era privilégio de uma minoria." senão eu iria ficar boiando pro resto da vida.
    "...neoliberalismo sofreu um processo de redução fetichista..." "...confraria dos derrotados..." "...nostalgia de uma minoria..."
    Uma máquina de falar besteiras ( e da-lhe copy/paste da internet).

    Ainda bem que com a sua "análise" o texto ficou mais "digerível" (???). Não acredito, ficou mesmo?
    O caça-fantasmas foi uma tirada muito boa. Na mosca
    È isso o que digo, os textos dos caras são pura ideologia. Depois rotulam os outros.
    Daqueles editoriais do Estadão, Nassif, você pode retirar material farto para a categoria "Clássicos 2008"

  • "É uma lógica tão tortuosa
    "É uma lógica tão tortuosa quanto a dos blogueiros de veja", diz o nassif. E por acaso foi justamente num desses blogueiros que li, pela primeira vez, a curiosa tese de que o neoliberalismo nunca existiu, era uma categoria criada pelos marxistas ou viúvas do Socialismo, algo assim.
    Os caras estão dando nó em pingo d'água para desdizerem o que diziam ontem! Tentam "provar" que foi excesso de regulamentação e de Estado que causou a bancarrrota. É o cinismo elevado a sua máxima potência...
    Por isso a gente precisa, cada vez mais, ler The Economist, NYT, Le Monde, El País, etc. Qualquer um desses órgãos, entre outros, destrói a mídia cartelizada brasileira e os "especialistas " de ocasião, sempre prontos a dar palpites errados sobre qualquer tema, da ótica mais reacionária imaginável. A quem pensam enganar, ainda?

  • Quando você não compreender
    Quando você não compreender algo, culpe o "cristianismo ocidental". A bíblia não condena o lucro, mas a ganância.

  • Pô, Nassif, tá querendo
    Pô, Nassif, tá querendo estragar o ano da gente, que já se promete difícil, citando logo no dia 1 um sujeito que nem esse?
    Para você e sua família um excelente 2009, com muita saúde, serenidade e paciência para enfrentar as pesadas batalhas que vêm por aí.
    Vocês sabem que sempre contarão com a gente para o pouco que pudermos fazer, em todos os campos, para apoiá-los.
    Feliz Ano Novo!

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