Categories: Saúde

A redução de danos, por Dráuzio Varella

Na fase inicial – e mais repulsiva – do jornalismo de esgoto, impulsionado pelo pacto da mídia de 2005 um blogueiro atacou a política de redução de danos de maneira sórdida. Trata-se de uma estratégia para ajudar viciados. Se não pode convencê-los a largar o vício, pelo menos ensine-o a não se matar, a utilizar o vício com o menor dano possível à saúde. É um passo importante para a reabilitação pois, através de pequenos passos, o viciado passa a acreditar mais na sua possibilidade de vencer o vício.

A campanha investiu contra a Fapesp, que financiava uma pesquisa de redução de danos em ecstasy. Chegou a insinuar que a orientadora da tese – uma professora de 68 anos – podia ser acusada de traficante. O Jornal Nacional repercutiu a acusação indecorosa, colocando a Fapesp na defensiva.

O Blog colocou-se a favor da professora e da orientanda. Recebi email da Fapesp sustentando que a pesquisa não seria interrompida e reafirmando seu aval ao trabalho de orientadora e orientada.

Foi a primeirta experiência com o bafo putrefato do novo estilo que, por alguns anos, envergonhou o jornalismo brasileiro.

Por JB Costa

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2304201126.htm

DRAUZIO VARELLA 

Redução de danos 

A questão da vida saudável desvia a medicina de sua função: aliviar o sofrimento humano

OS BRASILEIROS engordam cada vez mais. Em 13 anos estarão tão obesos quanto os americanos de hoje. Em pouco mais de uma década a paisagem humana de nossas cidades será a mesma que choca os turistas quando levam os filhos à Disneylândia.
É paradoxal: de um lado, nunca fomos expostos a tanta informação de qualidade sobre a conveniência de adotar a assim chamada alimentação saudável, beber com moderação, praticar atividade física e não fumar; de outro, adotamos o estilo de vida oposto.
O fenômeno é mundial, poupa apenas os países muito pobres em que há falta de comida e de acesso ao conforto que a tecnologia proporciona.
Se toda a humanidade se comporta dessa maneira, sou forçado a questionar o papel da medicina no mundo moderno.
Há mais de 40 anos repito para meus pacientes que o corpo humano é uma máquina desenhada para o movimento, que a rotina sedentária e o excesso de calorias ingeridas apressam o envelhecimento e encurtam a duração da vida. Pareço o sacerdote no púlpito a insistir que os fiéis resistam às tentações da carne, diante da igreja surda.
A questão da vida saudável transforma o médico num defensor involuntário da moral e dos bons costumes e desvia a medicina de sua função primordial: aliviar o sofrimento humano. Explico o que quero dizer, caríssimo leitor.
Um homem me procura porque bebe demais. O que posso fazer para ajudá-lo? Aconselhá-lo a beber com moderação? Explicar que a bebida faz mal? Receitar os poucos medicamentos que a medicina desenvolveu para enfrentar de forma pífia uma tragédia pessoal dessa magnitude? Ou encaminhá-lo para os Alcoólicos Anônimos?
A experiência me ensinou a confiar mais nos Alcoólicos Anônimos, por uma razão simples: os resultados são melhores. Existe exemplo mais ilustrativo da incompetência médica do que curar menos do que um grupo de autoajuda?
Na cadeia, atendo mulheres que imploram tratamento para largar da cocaína. Chegam desesperadas, cheias de dívidas que lhes ameaçam a integridade física. O que a medicina tem para oferecer-lhes além de aconselhá-las a dizer não às drogas?
De que armas o médico dispõe para tratar as compulsões que infernizam aqueles que assaltam geladeiras na calada da noite, fumam, jogam, bebem, compram sem parar ou usam crack?
No início da epidemia de Aids, atendi um policial de 40 anos, pai de três filhos, que me pedia para encaminhá-lo a um cirurgião que o castrasse. Contou que não conseguia passar duas ou três semanas sem usar cocaína. Sob a ação da droga, invariavelmente ia atrás dos travestis que trabalham nas ruas, e acabava a noite nos hoteizinhos mais sórdidos da cidade. Nesses locais, já havia sido espancado e assaltado mais de uma vez.
Ingênuo como eu era na época, expliquei que a causa de sua desventura não era a sexualidade, mas a cocaína. Respondeu que estava cansado de saber, o problema é que não conseguia evitar as recaídas; se pelo menos a libido lhe desse trégua, seria possível reduzir os danos que a droga lhe causava.
Tentei inutilmente convencê-lo a desistir da ideia da castração, cirurgia de consequências irreversíveis, mas ele estava tão decidido que sugeri uma medida alternativa: tomar uma injeção de uma droga que bloqueia a produção de testosterona durante três meses, período que lhe daria mais tempo para reflexão.
Dois meses mais tarde, ele retornou, feliz com o resultado. Não havia abandonado a cocaína, mas estava livre da compulsão sexual.
O exemplo é didático. Não é papel do médico julgar comportamentos de acordo com seus critérios morais, nem é aceitável que a medicina atribua ao doente a culpa moral por ser portador da enfermidade que o aflige.
A ciência médica moderna deveria abandonar a ficção ridícula de transformar seres humanos preguiçosos, compulsivos, cheios de defeitos e vícios que prejudicam o organismo, em rebanhos de cidadãos bem comportados que passem a existência dedicados a cuidar da saúde acima de tudo, porque sempre haverá aqueles que acharão sem graça viver dessa maneira.
O que nos falta são tratamentos eficazes e recursos técnicos para reduzir os danos da obesidade, do sedentarismo, da dependência química e das compulsões autodestrutivas que nos atormentam.

Luis Nassif

Luis Nassif

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