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Papa Francisco, o homem do sobretudo negro

Do O Globo

Papa Francisco: o homem do sobretudo negro

José Casado

Jorge Mario Bergoglio, cardeal primaz da Argentina e agora Papa Francisco, é um jardineiro da própria discrição. Dono de hábitos comedidos, jesuíta com diplomas de Química e Teologia, nascido há 76 anos numa família de ferroviários portenhos, até ontem ele se distinguia pela aversão à fama e à ostentação. Tem 76 anos e passou boa parte deles como cardeal em Buenos Aires. Andava de metrô, geralmente a bordo de um sobretudo negro que o deixava irreconhecível.

Bergoglio não tem um dos pulmões, perdido por doença, mas soltou a voz como se tivesse todos, cinco anos atrás, em confronto aberto com o então presidente Néstor e a senadora Cristina Kirchner. Foi quando achou que tentavam transformar o juízo de padres colaboradores da ditadura militar em julgamento político da Igreja argentina.

Numa homilia dominical, criticou o governo Kirchner:

— O demônio não se aquieta, é o pai da mentira, da divisão, da discórdia, da violência.

Néstor acusou o golpe. No dia seguinte, devolveu:

— Há um Deus e é de todos, não é de alguém em particular. Mas, cuidado! O diabo também chega a todos. Tanto a nós, que usamos calças, quanto aos que usam batina.

Desde então, Bergoglio tem sido questionado pelos Kirchner e seus seguidores sobre as relações obscuras da Igreja com a ditadura militar, no período 1976-1983. Há episódios singulares nesse relacionamento.

Um deles é a suposta participação de hierarcas católicos no interrogatório dos padres Orlando Yorio e Francisco Jalics, sequestrados e torturados em 1977. Em livro (“El Silêncio”, Editora Sudamericana), o jornalista Horacio Verbitsky retratou Bergoglio em jogo duplo com o regime militar, a partir de documentos governamentais. Segundo Verbitsky, ele incentivava o trabalho de sacerdotes adeptos da Teologia da Libertação e, depois, os denunciava como subversivos.

É de Verbitsky a revelação de uma das mais insólitas iniciativas da cúpula episcopal argentina na cooperação com o governo militar: a permissão para a instalação de um “Centro Clandestino de Detenção” — nome usado oficialmente — numa propriedade eclesiástica.

Foi em 1979. O então presidente Jimmy Carter dera uma guinada nas relações dos Estados Unidos com a América do Sul para conter as ditaduras da região. E impôs à Argentina uma inspeção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos. Os emissários da OEA não encontraram um único prisioneiro na Escola de Mecânica da Marinha (Esma), centro de tortura hoje transformado em museu.

Com a ajuda da cúpula católica, a Marinha escondera meia centena de presos políticos em uma ilha a duas horas de barco da capital, pelo Rio Tigre. Propriedade da Igreja, era usada nos fins de semana pelo cardeal-arcebispo de Buenos Aires. Nome dessa ilha fluvial: “El Silencio”.

Alguns aspectos das relações entre a ala mais conservadora da Igreja argentina e os militares emergiram durante o recente julgamento do padre Christian Federico Von Wernich, ex-capelão da Polícia (de 1977 a 1978). Dos relatos das vítimas e de documentos apresentados nos tribunais, extraem-se cenas assim:

Encapuzado, deitado na cama metálica de campanha sem colchão, o estudante sentiu a água fria correndo sobre seu corpo nu, de 20 anos de idade. O pavor se misturou à dor lancinante na língua, no peito e na genitália devastados pelos choques elétricos.

O volume do rádio asfixiou os gritos — sinos e salvas de canhão da “Abertura 1812”, de Tchaikovsky, embalaram a sessão de tortura. Mais tarde, um desconhecido entrou na cela do “Centro de Detenção Arana”, nos arredores de La Plata. Perguntou em tom afável:

— Como se chama?

— Luis… Luis Velasco.

— Eu sou sacerdote, minha paróquia é na cidade de Nueve de Julio. Além disso, sou capelão policial…

— E como você se chama?

— Christian… Von Wernich. Te torturam… mas você consegue sentir algo que não seja ódio? — provocou.

— E como se sente participando da tortura? — devolveu o preso.

— É que todos vocês têm que pagar por seus atos contra a Pátria. Vocês provocaram muitos danos ao país com as bombas, os atentados…

— E temos que pagar sendo torturados? — retrucou o preso.

— Sim. A dor é uma forma de redimir o mal. Você tem que abraçar sua cruz, assim como Jesus, por outros motivos, aceitou seu castigo. Porque o mal se cura com o castigo…

Wernich foi julgado e condenado.

Bergoglio, agora Papa Francisco, herda uma Igreja com história recente atribulada. É testemunha privilegiada de uma fatia dela, no seu país e na sua cidade.

Luis Nassif

Luis Nassif

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