Saúde

Nobel a cientistas que descobriram vacina contra a covid-19 contrasta com “apartheid vacinal”

O Prêmio Nobel de Medicina deste ano foi atribuído aos cientistas Katalin Karikó e Drew Weissman pelas suas descobertas “que permitiram o desenvolvimento de vacinas ARN-mensageiro (ARNm) eficazes contra a covid-19”, anunciou nesta segunda-feira (2) o Comitê do Prêmio Nobel no Instituto Karolinska, em Estocolmo, na Suécia.

As descobertas dos dois laureados com o Prêmio Nobel foram fundamentais para o desenvolvimento de vacinas eficazes de ARNm contra a covid-19 durante a pandemia, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no início de 2020. 

Com o trabalho dos cientistas, as vacinas desenvolvidas salvaram centenas de milhares de vidas, mas também revelou o quanto a ciência ainda é refém dos interesses geopolíticos e desigualdades econômicas e seus benefícios não são entregues à população mundial com equidade – mesmo com vultuosos recursos públicos envolvidos. 

Enquanto países jogaram vacinas no lixo, com quantidades três vezes superiores às suas populações, na África, Ásia, América Latina e Caribe governos mal tinham doses para os profissionais da saúde que trabalhavam em hospitais abarrotados ou lidavam com cadáveres jogados nas ruas. 

O Covax Facility, programa liderado pela OMS, Nações Unidas e Aliança Global de Vacinas, com o objetivo de garantir a vacina para países em desenvolvimento, afirmou não ter recebido todas as doses acordadas por diferentes razões, mas um deles chama a atenção por dizer pouco (e muito): “otimizações de processos das farmacêuticas associadas”.

Apartheid vacinal

Diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom se referiu à desigualdade na distribuição e aplicação de vacinas nos diferentes países do mundo como um verdadeiro apartheid vacinal.  

Segundo a própria OMS, os países de alta renda, que correspondem a 15% da população mundial, chegaram a possuir, durante a pandemia, 45% das vacinas produzidas, enquanto os países mais pobres, que correspondem a 50% da população mundial, tiveram somente 17% das vacinas. 

Em 2022, com estoques abarrotados, pesquisas de mercado revelaram que países ricos tiveram de jogar no lixo cerca de 1 bilhão de doses, desde o início da pandemia. Nos Estados Unidos, foram mais de 15 milhões de doses jogadas na lata do lixo apenas em 2021, segundo ano da pandemia. 

Estima-se que mais de 12 bilhões de dólares foram investidos por governos de todo o mundo em empresas privadas para o desenvolvimento das doses, o que faz a opinião pública internacional não aceitar o argumento de farmacêuticas e laboratórios de que precisavam ressarcir gastos com as vendas das doses.  

África: o retrato da desigualdade

Desde que a pandemia de covid-19 foi declarada, em 2020, 13 bilhões de doses de vacinas contra a doença foram aplicadas e mais de 60% da população mundial está imunizada com duas doses ou dose única, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Só em doses de reforço, o número passa de 2 bilhões de injeções, e países como o Brasil já administram a quinta dose em populações vulneráveis.  

Com diferentes realidades para seus 1,391 bilhão de habitantes em 55 nações e territórios, a África tem países como Marrocos, que vacinou 63% da população, e a Eritreia, que ainda não chegou a 1%. No continente, a desigualdade mundial e o racismo colonialista estrutural se materializam.

No continente africano, o número de doses aplicadas contra a covid-19 é de apenas 800 milhões, em uma população de quase 1,4 bilhão de pessoas, o que faz com que somente uma em cada quatro tenha o esquema básico de proteção, sem doses de reforço, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) da África, articulados pela União Africana.

Desigualdades domésticas

Nos países em desenvolvimento ou pobres, além de terem recebido menos ou quase nada para seus estoques de vacinas, as populações precisaram conviver com as desigualdades internas. Nestes países mais pobres, os mais ricos se beneficiam do acesso facilitado às doses da vacina.

O Brasil pode ser considerado um exemplo, mesmo que tenha recebido proporcionalmente mais vacinas do que vizinhos como o Equador ou se comparado, nesta mesma proporcionalidade, a países da África. Em outras palavras, a população mais pobre do país vivenciou aquilo que populações africanas vivenciam até este momento.

Um estudo publicado na revista científica internacional The Lancet Americas aponta que regiões no Brasil com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em patamares médio e baixo apresentaram menor cobertura vacinal na fase inicial da campanha de imunização.

Enquanto as regiões mais ricas conseguiram aplicar em média 72 doses por 100 habitantes, os locais com IDH médio chegaram a 68 doses. Onde a pobreza é maior, esse resultado foi de 63 doses a cada 100 pessoas.

Na análise da Fiocruz, divulgada em nota, empecilhos no acesso fizeram com que os locais mais empobrecidos do Brasil tivessem dificuldades maiores para frear a propagação e os óbitos por covid-19. “O estudo alerta que esse cenário contribuiu para prolongar a pandemia e gerar novas variantes”, disse a Fiocruz.

Com informações de Público, Agência Brasil e BBC News

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Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

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