Estudos comprovam: decreto de Bolsonaro é retrocesso na política de Segurança

Jornal GGN – É unânime entre os especialistas e centenas de estudos: além de ferir o Estatuto do Desarmamento, o decreto do presidente Jair Bolsonaro que facilita a circulação e o uso das armas no país aumentará o número de conflitos armados e, consequentemente, a violência e as mortes no Brasil.

“Haverá um inédito incremento no número de armas nas ruas”, lamentou o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Há impacto real na sociedade com novas 255 mil pessoas que poderão andar armadas nas ruas com esta decisão”, assegurou o Instituto Sou da Paz. “O controle das armas de fogo deve ser um dos pilares de uma política de segurança que busca reduzir os níveis de violência na sociedade”, foi a conclusão do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO).

Sem ter conhecimento da medida tomada dias depois pelo presidente brasileiro, o Conselho, que tem sede na Argentina, realizou em Buenos Aires nos dias 9 e 10 de abril um encontro com 300 investigadores e acadêmicos da área de segurança em toda a América Latina. O grupo de trabalho trouxe as últimas pesquisas sobre “polícia e segurança em regimes democráticos” e concluiu que as armas de fogo, definitivamente, não são a solução para a defesa e a segurança pública nas nações regidas pela democracia:

“Ao contrário, preocupam as declarações realizadas por autoridades que reivindicam seu uso [de armamento] por parte de pessoas, já que nossos estudos dão conta que a proliferação de armas de fogo tem a capacidade de incrementar a letalidade dos conflitos, sendo justamente contraproducente usar como mecanismo de proteção”, informou o grupo de pesquisadores.

O resultado desse encontro foi o desenho de uma política criminal eficiente para a prevenção de delitos e a manutenção de direitos, recuperando a necessidade de restabelecer esses conceitos nas emergências que atravessam a segurança democrática na atualidade, da mesma forma como o abandono e a deterioração de políticas públicas chaves [acesse aqui a conclusão do CLACLSO].

E no que diz respeito diretamente ao tema de armamento, o CLACSO concluiu justamente o contrário do que determinou Jair Bolsonaro em seu decreto, nesta semana: “deve-se desencorajar a proliferação do uso de armas, com um plano de entrega voluntário; deve-se manter exigências e requisitos para a concessão de licenças de porte, incluindo o controle da violência de gênero; a imediata destruição de armas que são confiscadas; a eliminação do estado policial e a regulação de seu uso fora de serviço”.

O Mapping Arms Data mapeia a circulação e comércio (importação e exportação) de armas pelos países

Além dessa análise no âmbito geral, especialistas brasileiros ressaltaram o caráter inconstitucional da decisão de Bolsonaro, uma vez que a legislação brasileira proíbe o porte de armas, e a mudança do Estatuto do Desarmamento só poderia ser feita pelo Congresso Nacional. Nesse sentido apontaram tanto o Instituto Sou da Paz, quanto o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“É claramente uma tentativa de driblar o Estatuto do Desarmamento”, disse com preocupação o Fórum Brasileiro. “Além de contrariar a legislação atual, o decreto carece de uma análise do Congresso Nacional, e parece ter sido feito sob medida para agradar alguns eleitores do atual presidente da República, que dá sinais claros de realmente acreditar que Segurança Pública começa dentro de casa”, escreveu a entidade, em nota.

Além disso, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, o presidente da instituição lembrou que se trata de um medida presidencial que remete aos tempos da ditadura no país: “Como não estamos na ditadura, é inconcebível que um decreto altere uma lei votada no Parlamento e longamente discutida na sociedade”, manifestou.

“A medida assinada pelo presidente Jair Bolsonaro é claramente uma tentativa de enterrar o Estatuto do Desarmamento, que está em vigor no país desde 2003. Deixa a impressão que estamos voltando aos tempos da ditadura, quando os governos preferiam legislar por ‘decretos-lei'”, disse Renato Sérgio de Lima, que é também professor da FGV.

Remetendo não somente às pesquisas à nível mundial e da América Latina, como também do próprio país, Lima afirma que “Bolsonaro simplesmente ignora a discussão no Legislativo de um assunto de tal gravidade e vai contra as centenas de estudos que demonstram a ineficiência de armar civis para tentar melhorar a segurança pública”.

Isso porque os últimos dados são claros: a violência se previne como uma agenda articulada entre a União, estados e municípios para a Segurança Pública, e não com a liberação de armas. Assim mostrou o Instituto Sou da Paz, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto Igarapé, em recente estudo publicado, no final de 2018. FBSP-Agenda-prioritaria-eleicoes-2018-1

 

No documento entregue ao governo federal, as instituições e pesquisadores indicaram que é preciso 7 caminhos para se atuar na área: um sistema eficiente para gerir a segurança pública; estruturas estatais coercitivas e regulatórias para enfrentar o crime organizado; efetividade e eficiência do trabalho policial; reestruturação do sistema prisional; programas de prevenção da violência; reorientação da política de drogas, e a regulação e o controle das armas de fogo.

Com base nesses pilares, seria possível reduzir e prevenir crimes violentos e enfraquecer as estruturas do crime organizado, apontaram os especialistas. No último desses pontos, um dato alarmante: o Observatório de Homicídios, do Instituto Igarapé, mostrou que mais de 70% de todos os homicídios cometidos no país usaram armas de fogo, muito acima da média mundial de 41%.

Os dados do Brasil mostram que 71,1% dos homicídios ocorreram por armas de fogo – Acesse esse e outros dados do “Homicide Monitor”, do Iarapé, aqui

Os crimes letais são visíveis: apenas em 2016, quase 45 mil pessoas morreram no Brasil pelo disparo de uma arma de fogo. Isso sem contar o uso desses armamentos para a prática de crimes como roubos e outros, impactando em um estado de medo na população, e a letalidade e feridos por balas perdidas.

Ainda, um estudo do Instituto Sou da Paz, “De onde vêm as armas do crime apreendidas no Sudeste? Análise do perfil das armas de fogo apreendidas em 2014“, mostrou que a falta de rastreamento e enfrentamento ao tráfico de armas e munições partiu do próprio governo federal, que foi responsável pelo controle de somente 9,7% do total apreendido, entre 2013 e 2016.

pesquisa-an-lise-de-armas-do-sudeste-online-1

 

O Sou da Paz também divulgou, há pouco, o dado que aumento em 36% a venda de munições no Brasil de 2010 para o ano passado. E, ao mesmo tempo, houve graves falhas na política de rastreamento, porque somente 26% das armas que circulavam no país em 2018 eram rastreadas pela polícia. “Em um país com mais de 40 mil mortes com arma de fogo por ano é inadmissível que não avancemos no uso destes mecanismos de controle”, apontou o Instituto.

“O que realmente chama a atenção é que o governo demonstra claramente desprezar os caminhos que já se mostraram viáveis para o combate à violência. A começar pela implantação de uma política pública de segurança fundamentada e que possa de fato melhorar os índices de segurança pública”, alertou Renato de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Por isso, os especialistas e entidades do setor acreditam que muito mais do que uma resposta à segurança pública, o decreto de Bolsonaro foi um apelo popular de promessa das eleições. “O presidente privilegia um grupo pequeno da população brasileira para a manutenção de um hobby ou um esporte em detrimento da segurança pública”, resumiu o diretor do Sou da Paz, Ivan Marques.

Mas o preço desse jogo custará caro ao país. “Insistir em medidas que facilitem a compra e circulação em vias públicas de armas e em medidas que sobrecarregam as instituições públicas em prol do benefício de um pequeno grupo só irá piorar o grave cenário da segurança pública enfrentado pela população brasileira”, afirmou a entidade.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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