Quando o Estado quer cobrar do preso pela sua “estadia”, por Rodrigo Medeiros da Silva

Por Rodrigo Medeiros da Silva
Entender as posturas idiossincráticas e nefastas de muitos dirigentes brasileiros é algo de causar repulsa e indignação. O PLS 580/2015, de autoria do Senador Waldemir Moka, é talvez o ápice da escuridão pela qual a sociedade brasileira passa. A proposta do insigne representante do Estado de Mato Grosso do Sul, cujo relatório do Senador goiano Ronaldo Caiado foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Alta brasileira no último dia 6 de junho, altera a Lei de Execuções Penais no sentido de impor ao preso o dever de ressarcir o Estado pela sua “estadia” em estabelecimento prisional.
Esta é mais uma iniciativa legislativa que segue a lógica falida de um sistema punitivo que, nos últimos 200 anos, demonstrou a incapacidade do modelo técnico-corretivo adotado, que se propõe a produzir sujeitos dóceis.[1] Fica também a dúvida a respeito da natureza desta cobrança irracional. Seria de natureza tributária, assemelhada à taxa (na dicção do artigo 77 do Código Tributário Nacional)? Fica a provocação!
A proposta do Senador Waldemir Moka está completamente desconectada da realidade do sistema prisional brasileiro. Se o Estado, por meio da criminalização primária, tipifica as condutas criminosas com suas respectivas sanções, este mesmo Estado deve prover os meios para aplicação desta sanção. É algo inconcebível, nos dias atuais, que a execução penal adentre na esfera privada no sujeito apenado, interferindo violentamente no seu patrimônio por meio de inscrição em dívida ativa e outras medidas constritivas, sob o argumento de ressarcimento das despesas para sua manutenção em estabelecimento penitenciário, pois a sociedade não deveria arcar com gasto tão significativo.[2] Argumento tacanho e despropositado.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Medida Cautelar na ADPF 347, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, assentou que ocorreria no sistema carcerário nacional violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica, o que convolaria as penas impostas em suplícios cruéis e desumanos, o que é absolutamente incompatível com a Constituição (artigo 5º, inciso XLVII).
É o que se convencionou chamar de estado de coisas inconstitucional. Com a ilusória intenção de solucionar esta inconstitucionalidade, o parlamentar subscritor da proposta, na sua justificativa, expõe que a situação catastrófica do sistema prisional brasileiro tem como causa a falta de recursos para mantê-lo. Logo, sobrariam recursos para iniciativas nas áreas de saúde, educação, infraestrutura, dentre outras, se o custo com a assistência material fosse suportado pelo próprio segregado.[3] Tal justificativa constitui um mero sofisma. Apesar da proibição de contingenciamento dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional, os valores são insuficientes para gestão do sistema.[4] Atribuindo este dever (que é do Estado) ao preso, o parlamentar não sinaliza a melhoria do sistema. É uma atitude de Pilatos, que lava as mãos ao atribuir o custeio do sistema ao custodiado.
A proposta do PLS 580/2015 ignora todo um arcabouço teórico acerca da prisão, seus objetivos reais, objetivos declarados e outros pontos de grande relevância. A pena criminal, segundo Albrecht, tem como finalidade precípua o aconselhamento no apenado no sentido persuadi-lo a ter um comportamento sóbrio e cético, o que, sob a perspectiva empírica, é ineficaz e até mesmo contraproducente.[5] Neste rumo, o sistema de execução penal vive em constante reforma e sempre fica evidente o fracasso desta concepção, o que Foucault chamou de isomorfismo reformista.[6] Na atualidade não é diferente.
Aliás, o cárcere estabelece um complexo de relações disciplinares e cria uma nova ordem ou, ainda, um modelo de “sociedade ideal”. A pena se torna instrumento de poder que tem como finalidade a destruição daquele que é tido como transgressor para sua integração à sociedade como força de trabalho.[7] É neste contexto de exploração da força de trabalho que o PLS 580/2015 vem se fundar ao estabelecer que o ressarcimento por sua permanência no cárcere tenha como origem o trabalho do preso.
O âmago desse nefasto projeto de lei consiste em atender os objetivos de implementar e concretizar um projeto excludente de sujeitos indesejáveis: pobres (pois não contribuem para uma sociedade de consumo), negros (que historicamente são segregados), drogados (que não contribuem com sua força de trabalho), dentre outros grupos estigmatizados. Ademais, esta proposição legislativa acaba por ser um pontapé inicial para a mercantilização da prisão que passa ter uma estreita ligação com o sistema de assistência social, como ocorrera nos Estados Unidos no final da década de 1990.[8] Também se pode concluir que a lógica desta iniciativa de modificação da Lei de Execuções Penais é impor uma lógica financista, segundo asseverou Baratta[9] na sua Criminologia Crítica.
Ao invés de propor medidas populistas, que trazem o gozo incomensurável à patuleia, nossos representantes no Parlamento deveriam conhecer um dado histórico importante. No último quarto do século XIX, a Europa ingressava num período de grande prosperidade econômica, período este paralisado em 1914 com o início da Primeira Guerra Mundial. O acesso a bens de consumo, aliado a períodos de baixo desemprego, fez com que os índices de criminalidade caíssem significativamente, o que, consequentemente, diminuiria a população carcerária.[10] Seria um bom começo para a adoção de medidas verdadeiramente modernizadoras.
O ressarcimento dos custos de permanência do preso no sistema penitenciário reafirma o real objetivo da pena restritiva de liberdade – a docilização do apenado. Ademais, tal iniciativa não possui qualquer substrato teórico, ancorando-se, única e exclusivamente, na lógica orçamentária ao afirmar que o Estado não possui recursos suficientes para gerir o sistema e que esta seria a principal razão para o caos das unidades carcerárias, onde vigora a superlotação, a promiscuidade, enfim, a morte e o banimento social de seres humanos.
A lógica recorrentemente pregada por alguns políticos de que “bandido bom é bandido morto” (reafirmada por uma imprensa descompromissada com a formação da opinião pública) mostra-se incompatível com o Estado que tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana e que pretende proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado, como dispõe o artigo 1º, da Lei de Execuções Penais. Também é preocupante a passividade da comunidade jurídica frente à iniciativa legislativa tão absurda e desprovida e base teórica. Oxalá seja este projeto de lei sumariamente rejeitado.
Rodrigo Medeiros da Silva é Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.
[1] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. 30 ANOS DE VIGIAR E PUNIR (FOUCAULT). Disponível em http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/03/30anos_vigiar_punir.pdf. Acesso em 10 jun. 18.
[2] Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=577937&ts=1528415390762&disposition=inline&ts=1528415390762. Acesso em 9 jun. 18.
[3] Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=577937&ts=1528415390762&disposition=inline&ts=1528415390762. Acesso em 9 jun. 18.
[4] Tomando por base o Exercício Financeiro de 2017, os repasses às 27 unidades da federação somaram o montante de R$ 590.625.000,01, dos quais R$ 374.397.187,49 são despesas de capital e R$ 216.227.812, 52 para custeio. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/dirpp/instrumentos-de-repasse-1. Acesso em 9 jun. 18.
[5] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 77.
[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 32. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 227-239.
[7] MELOSSI, Dario. PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 216.
[8] WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 98-99.
[9] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 192.
[10] RUSCHE, George. KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 193-195.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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  • Os presos sem recursos para ressarcir o Estado...

    ... doarão sua força de trabalho?

    Parece o estágio inicial para o objetivo principal: a privatização dos presídios, copiando a matriz.

    Já deve ter interessados aguardando esse desfecho.

  • É inconstitucional. Como o
    É inconstitucional. Como o Estado prestador desse "servico" pode exigir pagamento se o cidadão foi forçado a aceitar a "estadia"?

    • O que é o crime?
      Peraí! O crime é inconstitucional também! O criminoso tirou ou abusou do direito de alguém ou da sociedade. Os seus direitos tem de ser reduzidos!

  • Comparação
    A China obriga os presos a trabalhos forçados. E no caso de execução, a família paga a munição. O prejuízo que o crime causa a sociedade e ao estado é em parte reduzido.

  • Se o prisioneiro for um

    Se o prisioneiro for um banqueiro ( pausa para rir),  a  idéia seria viável.  Mas se for um cidadão pobre, sem recurso algum, o que seria feito, primeiro levado para uma solítária ? E depois, receberia chicotadas? . E finalmente, seria fuzilado ? . No país da Casa Grande, tudo é possível.

  • Tá.
    Mas, não tem um estudo,

    Tá.

    Mas, não tem um estudo, um papel, um rascunho de como o Estado pode dar uma ocupação laboral a população carcerária, de todas matizes ?

    E não aquela de produzir bola de futebol.

    Imagino que deva haver alguma grama para aparar, escolas para serem reformadas, pintadas, cercas consertadas.

    Bom, se não há já fica a dica para trocentas teses defendendo que nada disso pode e o sistema continua na mesma.

    Até alguem propor que o Estado poderia dar uma ocupação laboral para a população carcerária que não seja somente a de fazer bola de futebol.

     

     

  • O outro lado da História

    Tá. Agora vamos contar um outro lado da História, que não foi contado neste post. 

    Sob a égide dos governos petistas, o Brasil se tornou um dos mais violentos países do mundo, com 26 homicídios para cada 100 mil habitantes. Só pra ter uma idéia, mesmo países subdesenvolvidos como nós tem taxas muito mais baixas que isto, na Argentina por exemplo temos 6 homicídios para cada 100 mil. 

    O que o governo petista fez para mudar isto? Nada. Pelo menos nada que funcionasse, só retórica, papo furado, e resolver que é bom, nada. Umas conversas sem sentido de que a distribuição de renda resolve a criminalid... Se fosse assim, a Indonésia não teria uma das criminalidades mais baixas do mundo. Enfim, muita desculpa e pouco resultado. 

    Agora, os coxinhas assumiram o poder e vão resolver o problema por bem ou por mal. E com a inteligência limitada deles, imagina onde vão buscar exemplos? Nos Estados Unidos, lógico. Lá é um país onde todo preso trabalha, tem de dar produção e lucro para o Estado, além de  cobrarem do preso uma taxa de 50 dolares por dia, diária de hotel. O preso ganha 4 dolares por dia trabalhando e lhe é cobrado 50, então ele sai da cadeia devendo milhões após alguns anos. 

    Isto é cruel? A pergunta não é esta. A pergunta correta é: Isto funciona? Sim. Isto mantém a criminalidade baixa nos EUA, cerca de 4 homicídios por 100 mil habitantes. 

    Provavelmente nossos deputados coxinhas vão copiar toda a legislação dos EUA, se tiverem tempo o suficiente para isto no poder. Pena de morte, imposto de renda regressivo, liberação de porte de armas, tudo, tudo. 

    E ainda por cima, quem assina a autoria do post é um membro do Judiciário, sob cujo comando, o país tem caminhado rumo ao abismo, com a destruição total de suas maiores empresas. Engraçado, este caro senhor não tem coragem de criticar os excessos das operações judiciais que destruiram o país, mas pra criticar um projeto de lei como estes, ele tem. 

    Os petistas poderiam ter feito muito pelo país, e pelo sistema criminal, mas preferiram apenas curtir o sucesso eleitoral que tinham, numa arrogância tremenda. Podiam ter copiado o sistema prisional dos países nórdicos e muito mais, mas não fizeram nada. 

    Agora os coxinhas vão tentar fazer, do jeito deles, a torto e a direito, e mais cedo, mais tarde vão resolver o problema, ainda que por linhas tortas. . Isto é compreensível. 

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