Xadrez do Nassif

Xadrez do Exército e da tentativa de golpe, por Luis Nassif

Peça 1 – a estrutura do golpe

O golpe foi meticulosamente armado, porque com extensão nacional e mantendo o mesmo modelo em todos os estados. O golpe consistiu no seguinte:

  • Cooptação de militares – Montagem de acampamentos golpistas em áreas do Exército, com participação de famílias, idosos e aposentados. A seleção se deu por duas razões objetivas: oferecer blindagem da ocupação contra eventuais ações das prefeituras municipais, já que eram áreas militares; facilitar a participação de familiares de militares, sensibilizando os militares a aderir ao golpe – típica manobra de guerra híbrida. Militares atuaram também nos edifícios invadidos, para impedir a captura dos baderneiros e a entrada da Polícia Militar nos acampamentos, ou orientando os invasores do Palácio a fugirem. Em São Paulo, o governador bolsonarista Tarcísio de Freitas segurou a remoção do acampamento em frente aos quartéis, até que os integrantes pudessem sair sem serem fichados.
  • Militares bolsonaristas – Várias manifestações de militares bolsonaristas, visando manter a vigília até o momento do golpe. Há vídeos mostrando o general Braga Netto e o próprio Bolsonaro criando expectativas.
  • Empresários – Financiamento das ocupações. De cidades do interior às capitais, o modelo era o mesmo, com banheiros químicos e esquemas de alimentação. As investigações certamente irão bater na barra pesada dos ruralistas, dos Clubes de Atiradores e Caça (CACs), mineradores clandestinos e empresários municipais. Enfim, os atores do que se sabia ser um governo de milicianos.
  • Acampados – Convocaram-se famílias, aposentados, idosos em geral, familiares de militares, visando sensibilizar as tropas nos quartéis. Manteve-se esse clima até a invasão, com a intenção de quebrar as noções de hierarquia e conseguir a adesão para o golpe. Típica manobra de guerra híbrida.
  • Invasores – Houve uma mescla covarde de famílias, com idosos e crianças, servindo de blindagem a baderneiros, o lumpen de várias cidades, todos confiando que o Exército iria garantir a invasão. Some-se a articulação do Secretário de Segurança do GDF, Anderson Torres, com o governador Ibaneis Rocha. Torres viajou de férias. Como poderia ter férias se havia assumido o cargo há poucos dias sem cumprir o interstício legal de 360 dias para gozar o direito? Chama atenção a completa irresponsabilidade de alguns militares com seus próprios familiares, colocando-os nas linhas de frente, correndo o risco de serem marcados como terroristas. Depois, quando chegou a PM, houve a ação desesperada de coronéis, tentando evacuar os baderneiros.
  • Os guardiões dos templos – Finalmente, a cooptação dos militares incumbidos da defesa do Palácio do Planalto, deixando-o totalmente desguarnecido.
  • Os estrategistas – É evidente que o planejamento foi militar, a começar da montagem nacional de acampamentos em áreas militares, com familiares chamando os parentes para o golpe, a concatenação da invasão com o desmonte da PM de Brasília e da defesa do Palácio do Planalto.

Peça 2 – a resistência democrática

A leniência com os baderneiros permitiu que a serpente do golpismo colocasse a cabeça para fora da toca. Inclusive expôs de maneira inédita parte dos militares golpistas. Inaugura, também, uma nova era política – que alguns analistas estão batizando de governo Lula 4.

Nosso colunista Luiz Alberto Melchert levanta um ponto relevante para organizar a política dos novos tempos:

“Assim como a direita usa a figura do comunismo para catalisar a população em torno dos seus interesses, nós temos de usar a destruição para catalisar a população contra a extrema-direita. Assumir um inimigo é que tem mantido os Estados Unidos coesos. Primeiro foi a União Soviética, depois os árabes, hoje a China. 

Sem um inimigo real ou imaginário, o sistema não se sustenta. A tentativa de golpe e a destruição devem estar sempre na argumentação dos democratas para servir de vacina, que não dura mais de um ano. Os escândalos a serem descobertos precisam ser servidos um a um, sempre com 8 de janeiro como molho”.

De fato, o vandalismo produziu uma união inédita entre todos os poderes, partidos políticos e mídia, desmontou o esquema de acampamentos, enfraqueceu eventuais propósitos golpistas das Forças Armadas e transformou o bolsonarismo, definitivamente, em inimigo da democracia. A ordem de prisão de Anderson Torres – por causa mais que justificada – abre espaço para uma ofensiva sem precedentes contra a estrutura miliciana montada pelos Bolsonaros.

Haverá farto material, tanto nos celulares dos invasores quanto nos dos 8 baderneiros que provocaram incêndios em Brasília anteriormente. Alexandre Morais autorizou a Polícia Federal a quebrar o sigilo telefônico não apenas deles, mas de todas as pessoas que mantiveram contato telefônico com os terroristas. Dificilmente o Gabinete do Òdio e a família Bolsonaro escaparão desse escrutínio.

Em suma, foi uma operação tão Tabajara que suscitou em alguns adeptos da teoria da conspiração a tese de que houve uma Revolução Colorida às avessas visando desmontar a ultra-direita brasileira. Bolsonaro é tão sem-noção que chegou a publicar um tuite questionando novamente as eleições, apagando-a em seguida.

Peça 3 – os rachas na frente

Passado o impacto do episódio, se entrará no mundo real, com as diferenças que marcam o grande arco de alianças, especialmente em relação aos temas econômicos.

De qualquer modo, os episódios reforçam a necessidade de Lula assumir medidas que aliviem o peso da crise econômica sobre a população.

Ainda é cedo para saber quando e como serão recebidas as propostas de incluir os ricos no Imposto de Renda e os pobres no orçamento.

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • Nassif, simplesmente perfeito. Posso estar enganado, mas acho que a palavra a ser martelada de forma insistentemente é TERRORISMO. Não é a toa que o Morão vem condenando o uso da palavra TERRORISMO para ser aos TERRORISTAS do 8 de Janeiro de 2023. O golpista Morão sentiu o golple.

  • Concordo, é preciso batizar e dar nome ao inimigo, e antes de tudo, chamar pelo que realmente é: INIMIGO. opositor, adversário, é outra coisa.*

  • O governo federal do PT NÃO controla o Exército, nem a Força Aérea, e muito menos a Marinha. O recém empossado Presidente da República não tem nenhum controle sobre as Forças Armadas. Os comandantes de cada arma apenas eram o mais antigo em cada lista, segundo a regra banal em vigor há décadas entre os militares da ativa. O Ministro da Defesa é um enfeite, não manda nada e tanto faz substituí-lo por outro, porque esse cargo jamais se consolidou no Brasil, é figuração e nada mais. Só não haverá o típico golpe militar com tanques e soldados nas ruas para derrubar o governo Lula, porque isso saiu de moda desde os anos 80, em toda a América Latina, por pressão americana, porque ficou ruim para os negócios esse velho tipo de quartelada, nem nos paisecos da América Central acontecem mais. A lição que nos deixou o 8 de janeiro é que o governo Lula é fraco e vai se arrastar em luta diária contra a extrema-direita até o fim. Vamos viver quatro anos de agonia e luta pela democracia. Será ainda pior se o governo do PT não conseguir fazer a economia crescer e deslanchar. Não consigo imaginar como será daqui pra frente. Temos como imagem do que nos espera o governo Biden, que também é pura agonia.

  • Chovem comparações entre a invasão ao Capitólio em 06 de janeiro de 2021 e a tentativa de golpe de estado com a tomada da Praça dos Três Poderes 08 de janeiro de 2022, em um remix da Praça Maidan, Kiev, em 2014. Lá, no Capitólio, morreram policiais da força de segurança responsável pela defesa do Congresso estadunidense. Ou seja, houve efetiva reação, paga mesmo com perda de vida, dos que ali estavam para proteger o prédio e o poder político estadunidense. Aqui, o Batalhão da Guarda Presidencial entregou o Palácio do Planalto aos fascistas. Até hoje, passados três dias, não há notícias de interpelação, feita por quem quer que seja, seja da imprensa ou dos responsáveis pelas investigações em curso, do comandante desse Batalhão ou de seus superiores hierárquicos, das razões que o levaram a esse comportamento.

  • Há um forte componente de fanatismo religioso desse domingo com semelhanças ao que ocorreu na Batalha no Marrocos. E nosso prudente Nassif foi dos poucos a alertar desde cedo o que viria a se consumar. No link abaixo ocorreu o que um jornalista experiente e independente analisou em essencia: CAOS para impor uma GLO. A hipótese mais simples é a mais correta. https://jefersonmiola.wordpress.com/2023/01/10/exercito-tinha-glo-preparada-para-atuar-depois-do-caos-terrorista-que-ajudou-a-criar/

  • A cobra fumou mas fumou maconha estragada, ficou tonta e o golpe deu ruim. Nassif esclareceu a tentativa material de golpe, porém, o mais importante, é a motivação do golpe, eis que os manifestantes estão profundamente convencidos de que sofrem uma insuportável violência ao serem governados por Lula. Aqueles que conquistaram as almas e as mentes do bolsonarentos estão a salvo e prontos para alimentar a fogueira do ódio e do terrorismo. Os meios de comunicação, as igrejas, as mídias sociais estão livres, leves e soltas. O trabalho do Lula, em princípio, é tomar da palavra. Desmentir a sua pecha de ladrão exigindo que se prove o que ele roubou e quando, condenando exemplarmente qualquer um que se valha dessa calúnia contra si. É também tomar a palavra com o argumento lógico quando alguém o chamar de ex-presidiário lembrando que Mandela foi presidiário por 25 anos e hoje é história de conquista. Lula, por ser demais verdadeiro, não tem sequer a arte do cinismo, típica dos governantes menos idôneos. Terá que mostrar quem é que manda, mostrar dureza e substância. Não é mais tempo de contemporizar. Lula tem pessoas fiéis e confiáveis em seu entorno, tem pessoas desleais e interesseiras ainda em maior quantidade a lhe sorrir. Saber quem são ele sabe, resta saber como se livrar delas. Ele vai conseguir. O marco zero dessa inteligência que o Lula tem foi o chega-pra-lá que ele deu no Múcio quando sorrateiramente lhe propôs a GLO.Já estava tudo preparado para o gran finale. Qualquer outro teria cedido. Lula é mais e melhor governante do que o povo brasileiro merece, mas como ele ama o povo, ele vencerá a todos os seus contendores.

  • Sem discordar dos pontos elencados,acho fundamental descobrir como que essa gente chegou a ficar de tal forma fanatizada que expôs familiares,como idosos e crianças. Como enfrentaram pelotão de militares com cavalos e bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo. Como ainda integrantes do governo,milicos reformados expuseram a cara e xingaram a instituição a que deveriam respeitar,arriscando-se,com aconteceu,a perderem sua boquinha de um polpudo salário.
    Não é o que fez essa gente acreditar e sim o como fez essa gente agir. Não é fácil. Qualquer um que tenha o mínimo de participação em mobilização popular,até mesmo uma assembleia de condomínio,sabe da dificuldade que é essa mobilização.
    É preciso investigar a forma com que essa fanatização foi elaborada para que possa ser revertida.
    Quem assistiu a todo o espetáculo dantesco,com certeza não deixou de observar a firmeza dessa gente./e nem dá para dizer que tinham segurança quanto a impunidade. Não foi isso que se viu. durante os piores momentos,viu-se a Polícia jogando bombas,a cavalria etc e eles não recuando e ainda lançando as bombas que eram jogadas contra eles em direção aos policiais.
    Enfim,o problema é muito mais sério do que avaliar quem e porque falhou.

  • Não foi o Pafúncio Sérgio Moro e sua Lava-Jato que destruíram a democracia brasileira. Moro é um medíocre advogado de Maringá, de baixíssimo nível de cultura e sofisticação. A crise do sistema político brasileiro é bem mais profunda. Foi fácil demais para Moro e sua turma de procuradores tão deslumbrados quanto provincianos da capital mais caipira do Brasil, apenas porque a democracia representativa-partidária que nasceu da Revolução Inglesa, da Revolução Americana e da Revolução Francesa e se consolidou no Ocidente ao longo do século XIX, sobreviveu à Grande Depressão e ao totalitarismo fascista e nazista, foi ferida de morte pela internet e pelo advento das redes sociais na década de 2000. É ilusão pensar que o bolsonarismo foi derrotado no domingo e vai agora desaparecer. Não vai. O mais inteligente líder latino-americano, Gabriel Boric, presidente do Chile, foi quem mais rápido percebeu o que está acontecendo, tanto que pediu a reunião da OEA. O chão embaixo do sistema político de todos os países do mundo democrático está profundamente rachado e não voltará a ser o que era até 2008. Uma era se foi para sempre. Quem acompanhou a eleição presidencial francesa em maio último pôde ver uma violência da grande imprensa do país contra o candidato da esquerda Jean-Luc Mélenchon, que deixaria sem graça a grande imprensa brasileira nos dias do impeachment da Dilma. O governo Lula foi empurrado até as cordas pela extrema-direita no dia 8 e de lá não sairá. Todo o período de quatro anos será vivido da mão pra boca. Por isso sempre achei ingênua a ideia de que era só derrotar o tosco Jair na eleição de outubro e tudo seria reconstruído tal qual era no Brasil antes do colapso do governo Dilma Rousseff. É chocante o nível profundo de bolsonarismo em todas as Forças Armadas e em todas as polícias do Brasil, estado por estado, e em todas as classes sociais. Fomos salvos de mais quatro anos desse horror por míseros 1,8% dos votos. Não acredito nem por um segundo que a próxima eleição presidencial, em 26, será um elegante debate entre o PT e algum partido no lugar do PSDB. A luta será feroz e selvagem, e não será feita por militâncias partidárias nas ruas, mas nas redes sociais.

  • Três ações:

    Curto prazo: tirar os bolsonaristas de DENTRO dos quartéis;

    Médio: acabar o Serviço Militar obrigatório e adotar como Patrono das Forças de Defesa Brasileiras, um Marechal que integrou de fato o Brasil com a tecnologia de ponta de sua época, o telégrafo, sem derramar sangue brasileiro: RONDON;

    LONGO PRAZO : Quero paz! Forças Armadas NUNCA MAIS!

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