A hipocrisia alemã

Enviado por Jota A Botelho
Do Público


Em 1953, a delegação alemã assina o acordo que lhe perdoaria parte da dívida e lhe atribuiria juros favoráveis para pagar o restante. Hoje, a Alemanha é a principal credora de países como a Grécia ou Portugal e é contrária a um perdão dessa dívida.
 
Milagre econômico alemão teve ajuda de perdão de dívida
por Sérgio Aníbal

Há 62* anos, 70 países decidiram perdoar quase dois terços da dívida externa alemã. O país duplicou o seu PIB na década seguinte. Um exemplo a seguir na atualidade?

Com a troika em Portugal e com o Governo, os partidos da oposição e os parceiros sociais a pedirem uma melhoria das condições dos empréstimos que foram concedidos ao país, uma efeméride registada na passada semana dificilmente poderia passar em claro. Na quarta-feira, concluíram-se 62* anos desde que foi assinado o acordo de perdão de dívida entre a República Federal da Alemanha e os seus credores, onde se destacavam os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, mas onde também surgia a Grécia.

A 27 de Fevereiro de 1953, a economia alemã, que tinha atingido o fundo após a II Guerra Mundial, deu um passo decisivo para uma recuperação classificada por muitos como milagrosa. Desembaraçou-se de quase dois terços da sua dívida externa e iniciou uma década em que conseguiu duplicar o seu PIB.

Num momento em que a Alemanha já unificada e sob a liderança de Angela Merkel assume o papel de principal credora dos seus parceiros na Europa periférica que recorreram aos empréstimos da troika – Grécia, Irlanda e Portugal -, não surpreende que surja o debate sobre que lições se devem retirar na atualidade sobre o que se passou há seis décadas. Um exemplo do efeito positivo que os perdões de dívida podem ter em economias em grandes dificuldades? Ou apenas uma comparação sem sentido de dois cenários completamente diferentes?

Recuando até esse dia e olhando para aquilo que ficou estabelecido nos Acordos de Londres então assinados, é difícil não traçar paralelos entre o passado e o presente. Em 1953, a Alemanha já tinha beneficiado da injeção de fundos provenientes do Plano Marshall e tinha acumulado, tanto antes como depois da guerra, uma enorme dívida externa, junto de mais de 70 países. Oito anos apenas após a queda de Berlim, a desconfiança dos outros países face à Alemanha era grande.

Endividada, com a economia em ruínas e com a credibilidade a zero, era como estava a Alemanha nessa altura. Um retrato em tudo semelhante ao que agora se faz da Grécia e, de forma mais moderada, dos outros países que tiveram de recorrer ao resgate da troika.

Como credores da Alemanha em 1953, o destaque também ia para uma troika, constituída pelos EUA, o Reino Unido e a França.

As negociações não foram fáceis e os registos mostram mesmo que estiveram perto de fracassar mas, no final, os Estados Unidos, preocupados em garantir que não se repetiam os erros do após I Guerra Mundial, que a Alemanha Ocidental mantinha a sua capacidade para se armar e que poderia continuar a comprar produtos norte-americanos, acabaram por aceitar aquilo que estava a ser pedido pela autoridades germânicas.

Na declaração final, EUA, Reino Unido e França deixaram clara a lógica da decisão: “A restauração da solvabilidade alemã inclui uma solução adequada para a dívida que leve os problemas econômicos da Alemanha em consideração”.

Em primeiro lugar, aceitaram uma redução do valor da dívida externa alemã (acumulada tanto antes como depois da guerra) de 62,6%. Para além disso, estabeleceram regras favoráveis para o pagamento do valor que ficou em falta. Podia ser sempre pago em marcos, os juros ficariam a níveis abaixo do mercado e, muito importante, o serviço de dívida teria de se adaptar, a todo o momento, à capacidade da economia alemã para fazer face à sua dívida.

Para que isso acontecesse, ficou estabelecida uma regra – sempre cumprida durante a década seguinte – que limitava a amortização anual da dívida e de juros a 5% do valor das exportações do país.

Com o perdão de dívida, com o dinheiro recebido do Plano Marshall e com a sua capacidade para criar produtos com sucesso no mercado mundial, a Alemanha duplicou o valor do PIB entre 1953 e 1963 e conseguiu, antes do tempo previsto, pagar toda a dívida não perdoada.

Quem defende que as condições atualmente impostas à Grécia, Irlanda e Portugal não dão a esses países a possibilidade de recuperarem a sua economia e pagarem as suas dívidas na totalidade tem apresentado o perdão de dívida alemã de há 62* anos como o exemplo a seguir. No entanto, quem pelo contrário defende que sem austeridade as economias periféricas não realizariam um verdadeiro ajustamento alerta que a reestruturação de dívida feita pela Grécia e os empréstimos concedidos pela troika aos países sujeitos a programas já são muito maiores do que os concedidos à Alemanha.

Dois alemães, Albrecht Ritschl e Hans-Werner Sinn, tem, através de artigos em jornais, contribuído para esse debate. Num artigo publicado no The New York Times, em junho passado, justificando a recusa alemã em aceitar um perdão oficial da dívida grega, Hans Werner Sinn, diretor do instituto Ifo, defendeu que a Grécia “recebeu uns espantosos 115 planos Marshall, 29 só da Alemanha, e ainda assim a situação não melhorou”. Albrecht Ritschl, professor de História Econômica na London School of Economics, respondeu na edição online da The Economist que as contas de Sinn estavam mal feitas porque se esquecia precisamente do perdão de dívida de 1953 e defendeu que “pode não haver uma recuperação a não ser que as dívidas sejam reduzidas a proporções geríveis”. Os dois acadêmicos continuaram depois disso, em várias respostas e contra-respostas, a discutir qual o peso da ajuda concedida à Alemanha de 1953 e à Grécia de 2013, sem chegarem a um consenso. Um consenso que os defensores da austeridade e os defensores do perdão de dívida tem tido dificuldades em encontrar.

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(*) artigo publicado em 03/03/2013 e atualizado p/2015.
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Jota Botelho

4 Comentários

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  1. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

    Quem sabe se a Grécia (e os demais) gastarem o resto que têm em armas, construírem alguns campos de concentração e devastarem a Europa, ameaçando a hegemonia EUA x Alemanha, com uma aliança no Pacífico?

    Ou se quiseram algo mais “limpinho”, podem comprar artefatos atômicos no mercado negro russo.

    A pergunta é: Quem serão os judeus da vez?

    Algum povo com grana e influência e que esteja sem Estado?

    Não serve os pretinhos da África.

    Nem palestinos.

  2. Como diz o ditado

    Quem pariu Mateus que o embale. 

    O acordo de Londres foi muito além do perdão de meade da dívida, impunha aos credores garantir uma balança comercial superavitária para a Alemanha, ou seja, a Alemanha poderia levantar barreiras comerciais unilateralmente para proteger sua industria.

    Mas há dois detalhe importantes aí que diferenciam em muito a situação de 1953 com a de hoje.

    O primeiro é que o alemão é, por natureza, austero. E por isso sua economia se recuperou tão rapidamente. E também já havia se recuperado nos anos 30. E hoje só está tão diferente dos outros europeus porque lá em 2003 os social-democratas sob o comando de Schroeder tiveram a coragem de fazer as reformas necessárias nas relações de trabalho e na previdência social, a Agenda 2010, que preparou a Alemanha e os alemão para a nova realidade de um mundo globalizado, onde um posto de trabalho na Alemanha pode ser substituído por um na Ásia sem muita dificuldade.

    Outro detalhe é ( era ) que a outra parte da Alemanha estava ali do lado recebendo toda a ajuda soviética e não precisa se ter mais que dois neurônios para chegar a conclusão que uma grande recessão no lado ocidental faria as pessoas migrarem para o lado oriental e finalmente o lado ocidental inteiro aderir ao comunismo.

    Tmabém não pode se desprezar o fato que a Europa como um todo, mas principalmente a Alemanha, enfiou um monte de dinheiro, mas bota dinheiro nisso, tanto na Grécia quanto em Portugal quando estes foram aceitos na Comunidade Européia, e muito desse dinheiro não se transformou em dívida. E mesmo assim, nem Portugal nem Grécia souberam o que fazer com a grande ajuda que receberam do restante da Europa. Muito pelo contrário. Usaram esse dinheiro para conceder aos cidadãos benefícios inimagináveis para um alemão, austríaco ou holandes.

     

     

    1. Que “benefícios inimagináveis” são esses?

      “Usaram esse dinheiro para conceder aos cidadãos benefícios inimagináveis para um alemão, austríaco ou holandes”.

      Você saberia especificar, o que um cidadão do sul da Europa tem de privilégios, que possam causar inveja aos cidadãos do norte da Europa? Ah, sim, o verão e as praias, no verão existe imenso fluxo “imigratório” de cidadãos do norte em férias, para as praias do sul; fora dessa estação, o fluxo imigratório de verdade ocorre do sul para o norte, em busca de melhores condições de trabalho e direitos para o cidadão.

  3. Os contextos historicos não

    Os contextos historicos não tem a mais remota semelhança. O reerguimento da Alemanha Federal era de máximo interesse dos anglo-americanos como anteparo ao bloco sovietico, 1953 era o grande momento da Guerra Fria.

    Foi dentro do mesmo contexto que os EUA lançaram em 1947 o Plano Marshall para recuperação da Europa;

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