A era do drama fora de contexto, nascida com a internet, por Ubiratan Muarrek

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A Era da Marmota (ou a Era do Drama Fora de Contexto, nascida com a Internet)
 
Ubiratan Muarrek

 

A Internet dos sonhos nasceu na década de 90, e morreu em algum ponto próximo a 2007. Até meados dessa data, acreditava-se que a world wide web revolucionaria, para melhor, praticamente todos os aspectos da vida humana, da economia à cultura, passando pela democracia, entendimento global e a qualidade das relações pessoais.

Em 2016, revelada a ambição de Mark Zuckeberg de consolidar o império do Facebook em meio a destroços — da economia, cultura, democracia, entendimento global e relações pessoais — , reinterpretações do verdadeiro caráter da rede começam a colocar as coisas em seu devido lugar.

Em 2007, quem imaginaria, por exemplo, que o close de uma marmota para uma câmera, sob o suspense de uma trilha sonora retirada do filme Jovem Frankenstein, equivaleria a um napalm cultural?

E que a mistura de drama e nonsense contaminaria o fluxo de informações de tal maneira que inauguraria uma nova era na comunicação digital?

Para cada novo estilo ou jeito de fazer as coisas, os que saem na frente dão, via de regra, o tom do que virá depois. Na comunicação instantânea, o vídeo Marmota Dramática é o representante mais vistoso da inauguração de uma nova era.

A Era do Drama Fora de Contexto, nascida com a Internet:

Dezenas de milhões de visualizações depois, fica mais claro agora, com o fluxo de informações contínuo a que nos submetemos, perceber que a Marmota Dramática não adicionava apenas seis segundos de humor e estupidez no vasto repertório da comédia humana.

A marmota fornece o formato, uma espécie de receita de como existir e ser notado — ou seja, como fazer comunicação — num contexto viral.

Considere alguns bilhões de pessoas, conectadas por aplicativos de fácil acesso, dispostas — ávidas — a compartilhar o que lhes caia, literalmente, nas mãos.

Encontre a sua marmota — considere as lutas de classe, as polarizações de raça e gênero, as disputas econômicas, o esgoto da política, a miséria produzida pelas redações, o apreço pela desgraça alheia, as catástrofes naturais, os preconceitos milenares, traições, CPIs — e o ressentimento, que inflama tudo isso e prospera igualmente entre os 99% do lado de cá e os 1% de Wall Street.

Selecione cenas que reflitam parcialmente, ou que em nada reflitam, o contexto natural das dissensões.

Adicione Tchaikovsky. Ou Iron Maiden. E aperte o botão “enviar”.

A Internet cuidará do resto. Basta checar os viewslikes, shares retweets.

Vejamos o exemplo da marmota. É inacreditável o fato de que os seis segundos que representam um abalo na cultura tenham sido extirpados de uma ingênua apresentação de pets (ou seja lá sobre o que seja) num programa verpertino da TV japonesa.

Veja com seus olhos (nossa marmota aparece aos 2´30″):

 E é incrível como os seis segundos “originais” foram editados e reeditados em centenas de versões — outro elemento do zeitgeist: editar e reeditar — por mentes brilhantes e criativas das quais ninguém nunca ouviu, e provavelmente nem irá ouvir, falar (insight: sempre haverá alguém capaz de descontextualizar algo melhor do que você).

E chegamos ao Marmota Remix:

Os efeitos dessa reviravolta na comunicação, porém, talvez não sejam tão incrivelmente divertidos.

Podemos até rir com a marmota-Bin-Laden. A versão Star Wars é particularmente engraçada!

Porém, o sex tape de uma filha adolescente, a transcrição parcial da conversa telefônica de um funcionário público, ou um trecho selecionado de um relatório de governo, “vazados na Internet”, podem ter consequências devastadoras.

Atrás da expressão de “surpresa” da marmota, escondia-se um elemento central, a partir da entrada da Internet na totalidade da vida cotidiana: um cenário social e político de crise e disputa permanente de significados e valores, que se renova e se reafirma a cada susto que tomamos num alerta de WhatsApp.

A afirmação do poder pelo controle da imagem remonta ao despertar dos séculos. Da monumentalidade das pirâmides do Egito, aos desfiles pomposos dos monarcas europeus, havíamos chegado ao controle minucioso e profissional das aparições de políticos e celebridades na televisão.

Então, surgiu a Internet.

Com ela, o fluxo de informações se instala, as mentes — incluindo as insanas— se empoderam com as novas mídias, e a crescente ansiedade coletiva chamada globalização se soma à dificuldade cada vez maior de lidar com a complexidade de um mundo em transformação.

Como bem aprendeu o Estado Islâmico, que recontextualiza rituais ancestrais de terror em vídeos de visibilidade— e capacidade de intimidação — global, qual melhor maneira de tirar proveito disso, que não sejam seis segundos de choque e pavor?

Bem-vindos à Era da Marmota. Tome um Lexotan e siga o flow.

 
Redação

3 Comentários

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  1. Teorias de mente

    Como ja dizia Tom Ze (e nao achei o video no qual ele fala isso mas ta no youtube), nao ha maneira de errar fazendo musica, eh a unica estrutura totalmente livre de “erro”.

    Quanto mais teoria de mente uma pessoa tem, mais ela quer uma estrutura.  A coisa parece simples mas nao eh, pois quanto menos teoria de mente voce tem, mais voce quer uma estrutura, nao importa quao infima!

    Vide os neo evangelicos, por exemplo, que sao incapazes de entender um texto com comeco, meio, e fim.  Nao, esse nao eh um comentario religioso nem anti religioso, eh uma critica tecnica a respeito de teoria de mente:  eles nao a tem.  E ja apareceram n comentaristas conhecidissimos aqui no blog que igualmente nao tem teoria de mente suficiente pra entender mais que palavras soltas mas sao incapazes de entender um paragrafo inteiro, e muito menos um texto completo -eh incomputavel, literalmente.

    Falando em evangelicos, o “Para Nossa Alegria” eh perfeitamente brilhante, tem comeco, meio, e fim, e parece ate que foi concebido exclusivamente pra ter um monte de views e shares.  Foi espontaneo.  Perfeitamente brilhante.  Ai a gente da uma olhada nos comentarios do youtube e o primeiro que voce tem a infelicidade de ler diz coisa parecida com “nossa, so podia ser preto pobre” -O QUE????

    Resumindo, nao eh so preto pobre que nao tem teoria de mente suficiente pra entender mais que sentenca solta.  Vide “zelite” paulista.  Vide Aecio Neves, cujos textos demonstram claramente sua falta de teoria de mente -Aecio eh preto pobre no meu livro.

    Um pouco mais acima desses, tem a pessoa que consegue ler e entender um paragrafo inteiro mas nao tem teoria de mente pra entender o texto todo.  Essa pessoa consegue ler um paragrafo com 4 ou 5 sentencas e se sentir oh tao brilhante de ter entendido todas elas.  Longe de mim dizer Janot.  Eu jamais faria isso com ele, faria?

    Tem um problema adicional…  como sempre.

    Quem nao tem teoria de mente nao sabe que nao tem, nao reconhece que nao tem, nao sabe o que essa sentenca significa, e de qualquer maneira a sentenca esta longa demais pra eles…

    Toda musica esta certa, nao ha maneira de a fazer “erradamente”.  Toda musica tem estrutura.  Porem…

    Quem lida com “colocar cubo no buraco quadrado e tubo no buraco redondo” eh crianca de 3 anos.  Isso eh o que eh reconhecivel.

    Dos memes dessa classe que nos aparecem, tem um tal de “Geraaaaallldoooo” que aparece aqui de vez em quando que nao faz uma goticula de sentido pra mim.  Igualmente, praticamente tudo que Chico Anysio fez.

    Tem a pessoa que, surpreendentemente (para si mesmo e pra mais ninguem) consegue ler um texto completo e se sair com uma “contundencia” obvia a respeito disso ou daquilo que so demonstra que eles perderam tempo de ler o texto.  Nessa situacao cabem TODOS os telespectadores.  Eu tava falando isso outro dia com alguem, eu assisti alguns capitulos de Homem de 6 Milhoes e unzinho de Kojak, uns 4 ou 5 das Panteras, e foi pra nunca mais.  Lembro me perfeitamente quando essa idiotizacao do telespectador comecou no Brasil:  com criancas.  Subitamente a algum ponto do comeco dos anos 70 a rede golpe de televisao comecou um show em bloco de duas ou tres horas para criancas (no nosso mundo tudo eh novo e colorido, nao tem lugar pra essa gente que ja era, etc) e eu so achava aquilo tudo ofensivo

    Aqui cabe uma digressinha dentro da digressao:  sendo eu uma excessao, ja posso “confessar” de cara que ja evitava -entre varios outros- Os Tres Patetas nos anos 60.  Ate hoje eu nao ligo a televisao uma vez por ano.

    Ate hoje nao assisto nada.  E nem cheguei a mencionar os comerciais, mas vou so dizer isso pois eu devo ser telespectador autista, uma excessao a toda regra telespectadora:  eu detestava, absolutamente detestava comerciais desde a mais tenra idade.  E isso passou pros meus costumes de internet?  Advinhem…

    Eu posso visitar dezenas de sites e JAMAIS sei contar pra voces o que tava escrito nos “quadradinhos” de ads a nao ser que tiver um defeito muito irritante, como esse do lado direito da tela, se aparecer pra voces:

    https://games.yahoo.com/game/all-in-one-solitaire-flash.html

    SE aparecer pra voces.  O cara nao sabe anatomia, como se atreve a desenhar uma mulher tao mal???  A propaganda?!?!  Que propaganda?!  Eu nao tenho ideia de que tipo de propaganda eh, sou incapaz de computar essa monstruosidade!  Em caso alguem tiver duvidas, saibam tambem que eu nego saber ate mesmo o teor de qualquer anuncio aqui no blog(!).  Nao eh que eu nao olho.  Eh que eu posso olhar e nao vejo mesmo.

    Eu nao quero “entender um texto todo” e me aliviar de o ter entendido.  Eu quero ler o livro e me deliciar de o ter entendido.  Eh critico pra mim.

    So pra encerrar, o ponto dos skits de 6 segundos eh que eles tem comeco, meio, e fim.  Sao do tamanho da sua audiencia.  E nem sempre eu sou audiencia de qualquer coisa que aparecer na minha frente.  Pra mim tudo eh televisao, alias:  tem coisa que eu nao perderia nunca (Star Trek, por exemplo) mas elas sao tao extremamente raras que nao valem nem meu tempo!

  2. Ser humano tem essa perversidade…

    Esse texto me faz lembrar da capa da revista que tinha a Sandy que disse em entrevista que há pessoas que gostam de sexo anal e na capa, desvirtuaram o contexto dissendo que ela gosta dessa prática. Lamentável.

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