No tempo da ditadura, por Marcelo Rubens Paiva

Sugerido por Claudio.SJ

Do Estadão

No tempo da ditadura

Marcelo Rubens Paiva

 

“Como é que a gente faz hoje quando entra num táxi e o motorista diz que tempos bons eram os da ditadura?”, me perguntou o amigo Nirlando Beirão.

Diz que:

No tempo da ditadura, a gente não podia escrever sobre o tempo da ditadura, nem qualificar o regime como uma ditadura. No tempo da ditadura, ao invés de uma análise crítica sobre a ditadura, digo regime, neste espaço teria um poema de Camões ou uma receita de bolo, pois seria censurada.

Todo mundo que era contra a ditadura era comunista. Todos se tornaram suspeitos, subversivos em potencial. E muitos que, em 1964, conspiraram com os militares, na missão de impedir que comunistas tomassem o poder, e o Brasil se transformasse numa diabólica ditadura do proletário, perceberam a manobra e foram depois acusados de ligações com comunistas.

No primeiro ato da ditadura, o AI-1 (Ato Institucional Número 1), baixado pela Junta Militar em 9 de abril de 1964, cassaram os opositores dos comunistas, os trabalhistas: João Goulart, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, parte da bancada do PTB, partido fundado por Getúlio Vargas, como Almino Afonso e meu pai, Jânio Quadros, Miguel Arraes, o deputado católico Plínio de Arruda Sampaio, o economista Celso Furtado, o jornalista Samuel Weiner, até o presidente da Petrobras, marechal Osvino Alves. Nenhum deles era comunista.

Entre outros cassados, estavam membros da corporação que mais perseguições sofreu durante a ditadura: os próprios militares, como o general-de-brigada Assis Brasil, o chefe do Gabinete Militar, Luís Tavares da Cunha Melo, e os almirantes Cândido de Aragão e Araújo Suzano. Milhares de oficiais foram expulsos das Forças Armadas durante a ditadura.

Bem antes ditadura, o PCB (Partido Comunista do Brasil) já era ilegal, e seus líderes, eles, sim, comunistas, viviam na clandestinidade. A intenção do Golpe de 64 era impedir o avanço comunista no Brasil e restaurar a democracia em dois anos. Não demorou muito, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, candidato à reeleição, foi cassado acusado de corrupção e colaborar com comunistas.

No primeiro teste eleitoral, em 1965, não foram eleitos os candidatos dos militares em Minas Gerais e Guanabara. Baixaram o AI-2 (Ato Institucional Número Dois). Partidos políticos foram extintos. Poder Judiciário sofreu intervenção. Foram reabertos processos de cassação. Carlos Lacerda, então aliado, dormiu conspirador e acordou subversivo.

O novo partido da situação, Arena, não engrenava. Iria ser derrotado nos Estados mais populosos. A paciência dos militares se esgotou: o AI-3 foi baixado em 1966, determinando que eleição de governadores seria indireta, executada por colégios eleitorais, e prefeitos das capitais, estâncias e cidades de segurança nacional seriam nomeados.

O AI-4, de 1966, revogou definitivamente a Constituição de 1946 e proclamou outra. O AI-5, de 1968, suspendeu as garantias constitucionais da Constituição que tinham acabado de promulgar. Despachos da presidência de República passaram a valer mais que leis. Congresso, Assembleias Legislativas e Câmeras dos Vereadores foram fechados por um ano. O Presidente podia decretar intervenção de Estados e Municípios. Estavam proibidas atividades e manifestação de natureza política e suspenso o direito de habeas corpus.

Finalmente, parte da sociedade civil que apoiou o Golpe percebeu que militares não sabiam negociar nem ser contrariados. Não têm intimidades com jogo político. Na essência, não praticam a democracia: obedecem sem questionar um comando, uma hierarquia imposta de cima para baixo.

Foram acusados de comunistas os subversivos dom Elder Câmara, dom Pedro Casaldáliga e dom Paulo Evaristo Arns, que se encontrara em 1964 em Três Rios com tropas do general Olimpio Mourão Filho, deflagrador do Golpe, para oferecer assistência religiosa.

Nos tempos da ditadura, não se discutiam os grandes investimentos. Militares construíram uma usina nuclear com tecnologia obsoleta, numa região de difícil evacuação, e duas estradas paralelas ao Rio Amazonas, a Transamazônica e a Perimetral Norte, que foram tomadas pela floresta anos depois, devastando nações indígenas. Estatizaram companhias telefônicas e de energia. Colaboraram para o desmantelamento da malha ferroviária brasileira.

Editores de livros, como Ênio da Silveira, foram presos. Jornalistas, como toda a redação do Pasquim, entre eles, Paulo Francis, foram presos. Até um escritor no início simpático ao Golpe, como Rubem Fonseca, foi censurado. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e expulsos do Brasil. Raul Seixas foi convidado a se retirar, depois de ironizar o regime com “sou a mosca que pousou na sua sopa”. Chico Buarque se exilou. Teatros foram depredados, atores espancados. Parte da classe teatral, como Zé Celso e Boal, foi embora. Glauber Rocha também se mandou.

O contrabando e o jogo do bicho se associaram a agentes da repressão e se fortaleceram. O crime organizado nasceu. A promiscuidade entre polícia e bandido, tema do filme Lúcio Flávio (Babenco), se consolidou na ditadura, que promoveu e anistiou depois torturadores. O Comando Vermelho surgiu num presídio da ditadura.

Ao terminar em março de 1985, a ditadura deixou uma inflação que virou hiper (a acumulada de 1984 foi de 223,90%), uma moeda desvalorizada (um dólar valia 4.160 cruzeiros), uma dívida externa que nos levou à moratória (FMI suspendeu em fevereiro de 1985 o crédito ao Brasil, que não cumpria as metas depois de sete tentativas). Outra herança: desmantelamento do ensino público.

O Brasil é governado há 20 anos por três subversivos acusados de comunistas pela ditadura: FHC, ex-professor da USP cassado e exilado, Lula, sindicalista cassado e preso, e Dilma, terrorista acusada de liderar uma organização clandestina que praticava a luta armada. Líderes do antigo PCB fundaram o PPS. Todos estão na legalidade e participam da vida democrática, como o PCB e seu racha, o PCdoB, parte da base aliada.

O Brasil talvez tenha sido vítima de uma das maiores farsas da História: nunca correu o risco de virar comunista.

Redação

18 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Vou copiar e imprimir

    Excelente texto do Marcelo R. Paiva. Como sempre, didático e preciso. Vou imprimir e deixar na minha pasta algumas cópias. Quando alguns colegas aqui da empresa disseram tal demência, pego uma cópia e digo para lerem e refletirem. É o melhor que tem a fazer!

    1. Isso chama-se  “teste”!
      Mas o

      Isso chama-se  “teste”!

      Mas o governo federal já esta sabendo não subestime..mas

      me irrita o fato de não dizerem nada, tática é tática mas enche o saco.

  2. Maior faça da história do Brasil

    Tenho dúvidas se essa foi a maior farça da história do Brasil.

    Acho que a maior farça ainda está em curso: a suposta “inviolabilidade” das nossas eleições.

     

    1. Não, meu amigo, a maior é
      Não, meu amigo, a maior é escrever com “Ç”…
      heheheeh
      Não leve a mal. Também tenho dúvidas sobre as nossas urnas “eletrônicas’, as únicas no mundo cujos resultados não podem ser conferidos…
      Na dúvida, consulte um dicionário…

  3. Quinta coluna

    O texto não diz, mas a história mostra que a grande mídia colaborou com a deflagração do golpe militar e depois o apoiou. (Vide editoriais dos jornalões da época). Hoje essa mesma mídia contribui para a criminalização da política e dos políticos, particularmente se eles estiverem ligados ao governo federal. O povo, particularmente, a parcela mais desinformada ou conservadora, como é o caso dos taxistas não pensa assim ou assado ao acaso. Em outras palavras, o veneno que é destilado pela mídia cotidianamente produz em muitas pessoas o efeito desejado. Recentemente, o jornal a serviço da Casa Grande, FSP, traduziu incorretamente uma fala do Lula para o diário La Republica da Itália. Tudo isso em nome da boa informação.

  4. Sempre que algum babaquinha

    Sempre que algum babaquinha leitor de revista veja comenta que “quem era contra a ditadura é porque queria implantar outra no país, uma ditadura comunista”, respondo, fazendo cara de idiota:

    “É mesmo? Puxa, não sabia que Juscelino Kubitschek, FHC e até mesmo Carlos Lacerda, que foram perseguidos e cassados pelos militares, eram guerrilheiros marxistas. Vivendo e aprendendo…”

  5. A tragédia social de hoje nasceu na ditadura

    Esse texto precisa ser discutido em cada sala de aula do país inteiro, do ciclo básico aos cursos de pós-graduação.

    As novas gerações não tem a menor idéia do que significou a ditadura impostas pelos militares, sustentada pela velha mídia e pelos grandes grupos econômicos. Ignora completamente que a tragédia social, educacional, do crime organizado, da infraestrutura inexistente de hoje nasceu na ditadura.

  6. Essa é demais

    “Carlos Lacerda, então aliado, dormiu conspirador e acordou subversivo.”

    Esta máxima eu não conhecia. Os homens exageravam em matéria de acusação.

  7. O que eu acho lindinho é que

    O que eu acho lindinho é que quando se trata da ditadura daqui, todo mundo cai de pau. E com a mais absoluta razão, diga-se de passagem, pois liberdade não tem preço. O fato de eu poder falar o que me der na telha, contra ou a favor do governo (de qualquer governo), é uma bênção que só quem a perde sabe de seu valor. Jogar o jogo democrático, com suas idas e vindas, é um exercício de amadurecimento, tanto pessoal, quanto político. Fazer com que as instituições existam e procurar fazer com que elas se fortaleçam é a garantia de que os fundamentos da república e da democracia nela vigente seja preservados. Cada qual no seu quadrado e todos contrabalançando o poder de todos… Há coisa mais linda, apesar de suas imperfeições?

    Creio que, por coerência, todos deveriam detestar qualquer ditadura… só queria saber por qual motivo algumas são tão desculpadas aqui, neste espaço? Há ditadura do bem e ditadura do mal?

    1. Alguns regimes autoritários,

      tão somente por serem “anti-americanos”, são vistos com muita condescendência.

      Mas o que parece maioria em blogs em geral é minoria no mundo presencial. Não se preocupe.

       

      1. Condescendências…

        Em alguns blogs também se tem notado certa ou absoluta condescendência em relação a golpes de estado chefiados por milícias nazi-fascistas financiadas pelos EUA. Em geral estes defensores de golpes de estado não passam de coxinhas (fantasiados ou não) que se escondem atrás de máscaras pseudo progressistas. Na verdade, trata-se de reacionários que pouco a pouco vão deixando cair as suas fantasias e as já referidas máscaras.

        1. E há coisas que também são

          E há coisas que também são percebidas aqui e alhures: a enorme, imensa carga de teorias conspiratórias que tentam colar em terceiros a responsabilidade por todas os fracassos de determinados governos, fracassos esses que resultam em grande insatisfação por parte da população.

  8. Primoroso!

    O artigo de Marcelo Rubens Paiva é primoroso pela simplicidade.

    Não caiu na tentação de proporcionar, a quem viveu aquele momento, uma descrição espetaculosa do Golpe de 64.

    Mostrou sim, à geração que pouco sabe sobre o assunto, a insensatez miuda reinante naqueles tempos.

    E, ainda assim, há quem lembre deles com saudade…

      

  9. No tempo da ditadura


    Quando comecei a concientizar-me da violência da ditadura (1968) tinha 20 anos recém chegado à capital paulista. São Paulo tinha  um baixo nível de desemprego, o que não é diferente de hoje. A educação e a saúde era de razoável  qualidade (hoje também o são?) e não havia a violência urbana atual(morava em bairro quase periferia e muitas e muitas vezes chegava em casa de madrugada sem medo de ser assaltado-meu primeiro assalto foi no início da década de 80). Sabia que o pau de arara era ferramenta de trabalho do Fleury. Havia o medo generalizado de envolvimento em movimentos políticos porque tínhamos(meus amigos e conhecidos) conhecimento do peso da repressão.Não era universitário e, talvez por isso, vivi alienado do grau da  pauleira que ocorria nos anos de chumbo.Apenas sabíamos dos fatos pela versão dos ditadores.Meu único protesto foi rasgar o título de eleitor que era de outro Estado ,porque era consciente da hipocrisia e farsa das eleições.Enfim, a ditadura foi uma crueldade para a nação enquanto que a democracia hoje usufruída e  cantada em verso e prosa , também está matando milhares de miseráveis e outras vítimas inocentes.A humanidade está muito longe de se proteger de si própria.

  10. Mudou um pouco

    “Todo mundo que era contra a ditadura era comunista.”

    Não há ditadura, mas hoje, todo mundo que apenas critique o governo é demotucano rsrs.

  11. Fantástico. To atrasada pra

    Fantástico. To atrasada pra faculdade, mas sentei e parei pra ler, de tão mágico que é esse mundo! Escutei de um professor que temos a mania de dizer que política não se discute, mas é impossível, é inerente ao brasileiro, que já sofreu muito por isso. Parabéns pelo texto.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador