A hipocrisia das “verdades econômicas”, por César Locatelli

A hipocrisia das “verdades econômicas”

por César Locatelli

Não há nenhuma novidade em se afirmar que “verdades econômicas” são usadas e abusadas com propósitos políticos, tanto para se conquistar o poder e direcionar maior parte do bolo ao bloco no poder, quanto para constranger o oponente no poder e direcionar a maior parte do bolo para o mesmo bloco, agora fora do poder.

A pretensa trajetória explosiva dos gastos públicos, um dos argumentos mais utilizados a justificar as manifestações de 2013 e tudo que se seguiu, é exemplar. A gastança e a contenção de gastos resultam diretamente em expansão ou retração da dívida pública. O gráfico abaixo retrata o comportamento da dívida pública brasileira em relação ao PIB desde os últimos anos do governo FHC até o dado mais recente de janeiro de 2020.

Costuma-se usar como medida a dívida líquida do setor público. Tomamos, por um lado todas as obrigações que o setor público assumiu, ou seja, tudo o que, mais hora menos hora, terá que pagar, e deduzimos o que tem de ativos, ou sejam aqueles valores que cedo ou tarde receberá. Um menos o outro dá a medida habitualmente usada: a dívida líquida do setor público.

Uma vez calculado o montante em reais, calcula-se o percentual que a dívida líquida representava do Produto Interno Bruto, que é a soma de tudo que o país produz ao longo de um ano. É muito mais simples dizer que a dívida líquida brasileira era 54,2% do PIB em janeiro deste ano, do que dizer era 3,9 trilhões de reais. Além disso quanto maior o produto do país maior a sua capacidade de pagar as dívidas que contrai e a comparação com o PIB evidencia isso.

Pois bem, a longa trajetória de queda e o repentino retorno aos níveis do início dos anos 2000 são por demais evidentes no gráfico. O ponto mais alto, do período analisado, representou 62,45% do PIB, em setembro de 2002, no governo FHC, e o ponto mais baixo foi 30% em janeiro de 2014, no governo Dilma.

Lá em 2013, para animar as manifestações contra o governo, era preciso encontrar uma solução para lançar dúvidas sobre a viabilidade de longo prazo da política econômica dos governos petistas. O governo Dilma Rousseff vinha quebrando recordes de baixa da dívida, até atingir o ponto mínimo da série aqui avaliada: 30% do PIB em janeiro de 2014.

Interessante ressaltar que no ano de 2013, ano das manifestações ou “aquilo que deu nisso”, começamos o anos com uma dívida líquida consolidada do setor público de 32,16% do PIB e terminamos o ano com 30,5%. A média da dívida em 2013 foi de 31,5% do PIB. Era preciso ter muita imaginação para desenhar um quadro de descontrole das contas públicas.

A solução encontrada foi brilhante. Simplesmente, quebrou-se o termômetro. Para fomentar o clima de inquietação da classe média e continuar a pressão sobre os gastos sociais feitos pelo governo Dilma: os economistas e a mídia empresarial pararam, repentinamente, de falar da dívida líquida. Passaram a falar da dívida bruta. Ao invés de se falar no montante que o governo devia subtraindo-se o que tinha a receber, o discurso se fixou exclusivamente no montante que o governo tinha a pagar.

Aqui dois efeitos extramente relevantes foram desprezados. O primeiro é que para proteger o país dos sobressaltos cambiais, com a consequente necessidade, de tempos em tempos, de nos ajoelharmos frente ao FMI com o pires na mão, o governo Lula começou a fazer dívida em reais para comprar dólares. Como aumentava-se a dívida e, ao mesmo tempo, aumentava-se o ativo, com os dólares que passavam a compor as reservas internacionais do país. Assim, o efeito sobre a dívida líquida era zero. A dívida bruta, ao contrário, subia fortemente. E todos os jornais publicavam em suas manchetes a subida da dívida bruta.

O segundo efeito desprezado foi o empréstimo ao BNDES. O governo federal fez dívida para emprestar ao BNDES, que converteu esses recursos em empréstimos a empresas para impulsionar os investimentos e o crescimento da economia. Em ambos os casos a dívida contraída tinha ativos como contrapartida, não eram simplesmente gastos. O termômetro “dívida bruta” não levava em conta esse efeito. Mas, se deixava a população mais apreensiva porque não usá-lo, não é mesmo?

Vamos fazer uma conta: temos hoje 360 bilhões de dólares em reservas cambiais a nos proteger das peraltices do mercado global de câmbio. A cotação atual do dólar, no final de janeiro estava próximo a R$ 4,27. Multiplicando-se um pelo outro temos que nossas reservas internacionais equivalem a 1 trilhão e 500 bilhões de reais. Se vendêssemos todos os dólares poderíamos abater a dívida pública nesse montante.

Nossa dívida pública bruta (notem que mudamos aqui o termômetro) era 5,55 trilhões de reais, ou 76,1 % do PIB, em janeiro deste ano. Então, se nos desfizéssemos das reservas internacionais, a dívida bruta cairia para pouco mais de 4 trilhões de reais, ou seja, cairia quase 30%. Claro que as manchetes, de 2013 até o impeachment, só traziam a dívida bruta e esses efeitos eram desprezados.

O prêmio Nobel, Paul Krugman, em entrevista recente, qualificou a mudança no discurso dos republicanos como “um dos maiores atos de hipocrisia política da história”. O partido repetiu, durante todo o governo Obama, que os deficits públicos estavam conduzindo o país a uma inexorável catástrofe econômica. Tão logo Trump assumiu e acelerou os gastos, calaram-se e mudaram de assunto.

Proporcionalmente a dívida pública líquida do setor público subiu 72%, da média de 2013 para chegar aos 54,16% de janeiro de 2020, mesmo com o teto de gastos aprovado no governo Temer para conter o “descontrole” que o país vivia. As manchetes na imprensa nessa semana davam conta que a dívida pública federal caiu 0,45% em janeiro. O que é verdade, mas está longe de ser o mais importante.

Importante é manter todo mundo calmo.

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

Cesar Locatelli

César Locatelli, economista, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC. Jornalista independente desde 2015.

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