A lição de Mário de Andrade – II, por Walnice Nogueira Galvão

A lição de Mário de Andrade – II, por Walnice Nogueira Galvão

Afora a poesia, a ficção, a música, o folclore, a cultura popular, o ensaio, o artigo de jornal servindo de tribuna para a disseminação e defesa do Modernismo, outra atividade de Mário que confirma seu lugar de mestre de várias gerações é a faina incansável do epistológrafo. Escrevia cartas todos os dias, e cartas que não eram de brincadeira, nem só para dizer que estava vivo. Mas que discutiam ideias, obras de arte, trabalhos em andamento. Gente do Brasil inteiro mandava-lhe poemas, romances e contos, desenhos, pinturas, projetos variados, e pedia sua opinião. Mário levava a sério seu papel de mentor, e respondia a todos, tendo sempre em vista os interesses do interlocutor. Tampouco poupava críticas quando elas se faziam necessárias.

Após sua morte precoce em 1945, começaram a aparecer coletâneas de suas cartas, dadas à luz pelos destinatários. A primeira a surgir, e até hoje a mais famosa, é a de Manuel Bandeira. Dois poetas, dois grandes amigos. Trocaram cartas por cerca de 40 anos e discutiram sem cessar os desenvolvimentos do movimento modernista, de que ambos foram representantes máximos e ativistas na divulgação. Manuel Bandeira publicou logo as de Mário, mas meio século decorreria antes que as suas próprias  fossem publicadas conjuntamente. Forneceu-se assim ao leitor essa raridade que é uma correspondência vista em seus dois lados.

De 1945 em diante, os amigos foram publicando aquilo que hoje chega a mais de 20 volumes. Cartas de Mário endereçadas às principais figuras da elite da literatura e das artes brasileiras, como Rodrigo Melo Franco, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Câmara Cascudo, Portinari, Villa-Lobos … e mesmo a um garoto iniciante como Fernando Sabino. Mário não deixava ninguém sem resposta. Durante toda a sua vida, que afinal foi curta, influiu consideravelmente na cultura brasileira, não só através de sua exemplar produção pessoal, mas através do exercício de uma liderança que tinha braços longos, alcançando o país todo pelas asas do correio.

E isso ainda era pouco. Restava a correspondência passiva, isto é, as 8.000 cartas que recebeu e que, com a noção que Mário tinha do valor histórico, preservou cuidadosamente. Por disposição de seu testamento, não poderiam ser abertas antes de decorridos 50 anos. Respeitou-se seu desiderato, e, como Mário tem a sorte de ter seus arquivos no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, depois desse prazo a competentíssima equipe de especialistas que ali se concentra começou a abrir, ler, indexar e catalogar carta por carta. Os primeiros resultados já têm aparecido, entre eles preciosidades, como “o outro lado” da famosa correspondência com Manuel Bandeira. Preparam-se no momento muitas outras, como por exemplo as cartas que o mestre francês Roger Bastide enviou a Mário e que receberão edição bilingue. E assim por diante: um tesouro inesgotável. 

No campo das artes plásticas, Mário pregou e discutiu,  nas cartas e fora delas, os rumos de realizações que enfrentassem a circunstância brasileira, fugindo ao passadismo ou à cópia servil do que se fazia na Europa e nos Estados Unidos. Adepto das vanguardas e dos movimentos renovadores, aborrecia sem nenhum disfarce o conservadorismo e o academicismo. Isso aparece em tudo o que fez, em tudo o que pregou, e até em seu mobiliário, hoje sob a guarda do IEB. Querendo comprar móveis modernos para sua casa, e não os encontrando por aqui, inspirou-se em revistas alemãs de vanguarda e tornou-se designer. Fez os desenhos ele mesmo, mandando depois executá-los por marceneiros competentes.

E por falar em casa, aquela em que morou na maior parte da vida e na qual morreu, à rua Lopes Chaves, foi tombada pelo Patrimônio Histórico. Mantida tal qual deixou, pode ser visitada. Cuidou-se antes de transferir o acervo para o IEB/USP, onde, além de se encontrar muito bem tratado, tornou-se fecunda fonte de formação de pesquisadores e o maior desse tipo no Brasil. 

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP

Walnice Nogueira Galvão

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