Alterar a presunção da inocência? Não se mudam leis com raiva! Por Lenio Luiz Streck

da ConJur

Alterar a presunção da inocência? Não se mudam leis com raiva!

por Lenio Luiz Streck

Da série De Tédio Ninguém Morre Neste País – parte 3, exsurge no horizonte, ao mesmo tempo, PEC do Dep. Ivan Manente (a CCJ da Câmara aprovou dia 20.11.2019 o relatório por 50 a 12) e Projeto capitaneado por Alcolumbre, este por alteração do Código de Processo Penal, para impor prisão em segunda instância — a revanche ao julgamento das ADCs 43, 44 e 54. Se não for PEC, vai por via ordinária. De algum modo, dizem que vai.

Um dos projetos tem como alvo o artigo 283 e os dispositivos que tratam dos recursos no Código de Processo Penal. Dizem que foi Moro quem assoprou no ouvido dos senadores essa “saída”.

A proposta de nova redação do artigo 283 do CPP é a seguinte:

Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de condenação criminal exarada por órgão colegiado ou em virtude de prisão temporária ou preventiva.

Como se vê, uma técnica legislativa inadequada porque faz uma “mistura” entre a prisão processual, garantia do processo ou da sua efetividade, e execução provisória da pena, a prisão como modalidade de pena. Na verdade, diz o contrário do que decidiu o STF.

Além desse problema, há a violação ao artigo 5º, LVII da CF. O legislador ordinário quer fazer como o ministro Fachin: quer interpretar a Constituição de acordo com a lei ordinária, moda que parece que vai pegar. O Brasil ainda vai mostrar ao mundo essa nova “técnica”, pela qual é possível mudar a Constituição via lei ordinária…!

O Congresso parece não se dar conta — dominado em parte pelos gritos das alas punitivistas — de que, se aprovar uma proposta que anula a decisão do STF, dirá que o STF já não tem a última palavra sobre a constitucionalidade das leis. Mas, afinal, que importância tem isso para um enorme grupo de parlamentares que pregam até mesmo o fim da Constituição?

Uma questão intriga a comunidade jurídica:  se o artigo 283 foi declarado constitucional via ADC, isso tem efeito vinculante. Esse efeito não atinge o próprio Parlamento? Não estaria o parlamento, agora, querendo dar o drible da vaca no STF? O parlamento nunca está proibido de legislar. Todavia, quando há uma ação constitucional com efeito vinculante explícito, de que modo o parlamento pode inventar uma espécie de moto contínuo, porque a nova lei pode ser declarada inconstitucional e, assim, criar ainda maior instabilidade jurídico-institucional?

Já as outras propostas de alteração (e até inserção de um novo artigo no CPP) invertem o ônus argumentativo. Sim, um código de garantias que inverte o ônus contra o acusado. A regra passaria a ser prender após a segunda instância, o que contraria de novo e sempre a decisão do STF e a cláusula pétrea da CF.

Vejamos:

Artigo 617-A. Ao proferir acórdão condenatório ou confirmatório da condenação, o tribunal determinará a execução provisória das penas aplicadas, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.
§ 1º O tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa levar à provável revisão da condenação.
(…)
§ 3º O mandado de prisão somente será expedido depois do julgamento dos eventuais embargos de declaração ou dos embargos infringentes e de nulidade interpostos.”

Mais:

Artigo 637. O recurso extraordinário e o recurso especial interpostos contra acórdão condenatório não terão efeito suspensivo.
§ 1º Excepcionalmente, poderão o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça atribuir efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ao recurso especial, quando verificado cumulativamente que o recurso:
I – não tem propósito meramente protelatório; e
II – levanta questão constitucional ou legal relevante, com repercussão geral, e que pode resultar em absolvição, anulação da condenação, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto.

Por essa inversão, a de que prender é a regra, a proposta viola o princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado da decisão, retirando-lhe a eficácia prática. Não passa de fraude à lei e à Constituição. Direito sendo derrotado por discursos morais.

A proposta de alteração do 283 peca inclusive pela falta de técnica legislativa, criando uma cortina de fumaça, porque coloca a decisão condenatória decorrente de decisão colegiada (inclui o júri, porque não fala em segunda instância) como forma autônoma autorizativa de prisão (imediata). A decisão se basta. Automatiza a prisão. Nem precisa fundamentar a necessidade de prender.

Já a inserção de um 617-A inverte o sentido da garantia da presunção de inocência tal como consagrada na Constituição, além de afrontar a decisão do STF que acaba de dizer que o artigo 283 é constitucional.

Na sequência, cria-se um efeito suspensivo, por exceção (excepcionalmente, diz o projeto), para recursos que tenham matéria com repercussão geral (no STJ e STF). Quando é que se tem essa “excepcionalidade”?

De que modo um caso concreto de um réu, para ter efeito suspensivo, pode ter demonstrada a sua repercussão geral? Ou: de que modo poderá ser rejeitado o efeito suspensivo caso o réu não consiga provar que há repercussão geral? Terá que iniciar o cumprimento de sua pena, porque seu caso, por mais absurdo que possa parecer, não teve a sorte de ser contemplado com um juízo de Repercussão Geral?

Como será feito essa aferição? Ora, repercussão geral no STF, por exemplo, tem pauta para os próximos 5 anos (no mínimo). Como lidar com isso em termos de urgência que a liberdade necessita? Ou liberdade não tem urgência?

Mais: Quer dizer que o sujeito é condenado e terá que comprovar que o seu caso não é só dele, de sua liberdade, ou seja, seu caso tem de ter transcendência? Mas, a liberdade não é só dele? Liberdade tem como condição a demonstração de transcendência — e só então tem possibilidade de efeito suspensivo?

Já prevejo a formação de um muro para conter os recursos. Como já acontece hoje. É o que chamamos de jurisprudência defensiva.

Mas, calma. Tem mais. Tem a PEC capitaneada por Ivan Manente ( a CCJ da CD aprovou ontem). Ela altera dois dispositivos da CF (102 e 105). Faz o drible da vaca nas cláusulas pétreas. Bola por um lado, jogador do outro. A regra é: condenação em segundo grau, prisão. O acusado pode fazer revisão criminal. Por que ninguém pensou nisso antes? De novo, o Brasil dará lições de processo penal e direito constitucional ao mundo. Alguém sabe como funcionam hoje as ações de revisão criminal? Os requisitos? Como serão as “revisionais”? De todas as ideias, essa parece ser a mais absurda. O sujeito é condenado, vai preso e busca, via revisão criminal… deixa pra lá. Ação revisional… com repercussão geral. Essa é novíssima. Mas tem também a ação revisional especial, esta a ser proposta junto ao STJ. Parece que a tal PEC altera o sentido do que seja coisa julgada. Confuso isso, pois não? Esse parlamento… Ficou mesmo insuflado pelos discursos tipo GloboNews, Datena etc.

Lamentavelmente, os parlamentares não entendem que, ao eliminarem o RE e o Resp, para executarem a pena de prisão na segunda instância, estão criando um impacto sistêmico. Um tsunami processual!!!  Para além da crítica da revisão criminal via rescisória, esqueceram especialmente do cível. Sim, todas as condenações, também as cíveis, transitarão em julgado na segunda instância. Economicamente desastroso para o setor privado, mas, especialmente, para a Fazenda Pública! Os valores a pagar por precatórios chegarão a trilhões! Uma bomba. Bom, talvez com isso alguns parlamentares alcançarão o que desejam, consciente ou inconscientemente: a destruição do país. E da democracia! Viva eu, viva tu, viva o rabo de tatu!!!!

Ah, para não esquecer. Nada disso é necessário. Como venho me esfalfelando em dizer, o STF não proibiu que se prenda a partir do segundo grau. Demonstrei isso na semana passada, a partir de um caso de São Paulo (decisão do juiz Ali Mazloum).

Mas não adianta. Vale o “fator Sarderberg” — esse grande jurista contemporâneo, ganhador da Balança de Ouro no último campeonato de direito constitucional — pelo qual o que vale são falsas narrativas. Vale, mesmo, é dizer: o dólar subiu porque o STF decidiu proibir a prisão em segundo grau. O dólar só baixará de for aprovada a volta da prisão. Ou seja: a redenção do Brasil virá das prisões! Que coisa, não? A ABDGLOB (academia brasileira de direito GloboNews) faz escola. Já posso ver livros de direito facilitado citando os constitucionalistas Merval e Sarderberg (deve ser um jurista alemão, dirão alguns professores!).

Para se ter uma ideia, tão “caótico” (sic) ficou o sistema depois da decisão das ADCs que, no Rio Grande do Sul, depois da “caótica decisão do STF” (sic) que “consagrou a impunidade” (sic), apenas 3 condenados — sim, apenas 3 — saíram com base na nova posição do STF. Realmente, doutor Sarderberg e quejandos, estamos diante de um caos. E foram 8 da Lava Jato. Outro caos (sic).

Bom, segundo o pessoal que anda de camisa amarela da CBF pelas praças, chutando retrato de ministros do STF (em Porto Alegre velaram um caixão de defunto no Parcão, onde estava escrito: STF), seriam 190 mil os condenados a serem soltos. Uma vereadora foi ao delírio “denunciando a saída do casal Nardoni”. “— Tudo culpa do STF, berrava a edil”,  vestindo amarelo.

Pois é. Mas, de que modo podemos convencer as neocavernas de WhatsApp, essas verdadeiras células terroristas de ignorância artificial que estão tomando conta da esfera pública? O meme é: Fatos não há; só há interpretação dos fatos. O niilismo venceu.

Portanto, o Parlamento pode vir a estragar tudo, ao dar ouvidos a senadores e deputados que têm raiva do Direito e das Instituições. E dar ouvidos a parlamentares que pregam a ditadura. Afinal, que diferença faz uma PEC ou uma decisão do STF para eles? Nenhuma, certo?

Vamos jogar a água suja com a criança dentro? Com a palavra, o parlamento. E a comunidade jurídica, que de há muito já se entregou para os juízos morais. O direito foi substituído pela moral. O problema maior ocorrerá quando a moral já não servir. Chamaremos, então, o Direito? E depois, se não concordamos com o Direito, apelaremos de novo à moral? Até quando?

Até quando se instalar a anomia.

Redação

Redação

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  • Em 1964 os vagabundos usaram os fuzis e preservaram o Direito (ou pelo menos sua aparência, pois ele não valia nada nos porões da Ditadura onde os dissidentes eram moídos e assassinados). Os investidores vieram e o crescimento desviou a atenção do autoritarismo.

    Em 2016 os vagabundos usaram a destruição do Direito porque não podem empregar os fuzis. O resultado será uma total insegurança jurídica.
    Não estranha o fato dos investidores fugirem do Brasil. Eles podem adorar regimes autoritários, mas eles detestam as incertezas de um país sem Lei.

    • Quem assoprou a saída de se modificar o art. 283 não foi Sérgio Moro, mas sim o presidente do STF, Dias Toffoli.

      Ele interpretou corretamente a Constituição de que não há cláusula petrea quando à prisão antes do transito em julgado invocando o inciso 61 do art. 5º.

      Em verdade tudo estava funcionando de maneira elegante antes do STF de 2009 fazer lambança e proibir a prisão antes do transito em julgado.

      O termo "transitar em julgado" significa que não existe nenhum recurso mais possível ao Réu fim de questionar o teor da sua sentença condenatória. Quando se extingue os recursos diz-se que a sentença transitou em julgado.

      Mas e quando os recursos à disposição do réu condenado não tem efeito suspensivo? Oras se esse recurso impetrado pelo réu não tem o poder de impedir o andamento do processo inicia-se a execução da sentença.
      Isso é o que diz literalmente o art. 637 do CPP:

      Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.

      Ao se interpretar uma lei, e principalmente, um dispositivo constitucional, há de se respeitar alguns princípios: Em primeiro lugar a vontade do legislador.

      Quanto a isso está claro que o legislador trata diferentemente dosi conceitos: "culpa" de "prisão". Isso está claro porque esses dois conceitos estão em 2 incisos diferentes, 57 e 61 do art. 5º. A vontade do legislador não foi o de impedir a prisão antes do transito em julgado. Isso porque por 21 anos após a promulgação da constituição se continuou a se prender após a sentença de 2º grau.

      Em segundo lugar tem-se de harmonizar 2 dispositivos que poderiam um prejudicar o outro. A se levar a ferro e fogo o inciso 57 não poderia haver nem prisão em flagrante, nem prisões cautelares antes da sentença condenatória transitar em julgado. Quem autorizou essas prisões antes da sentença transitar em julgado foi o inciso 61, que deixou a fundamentação dessas prisões para a lei ordinária, tirando da esfera constitucional.

      E foi isso que aconteceu nesse último julgamento. 6 ministros contra 5 decidiram que não é inconstitucional a prisão após a 2ª Instancia. Dias Toffoli foi além, defendeu a prisão após a 1ª Instancia nos casos julgados pelo Tribunal do Juri. Mas 5 ministros acharam inconstitucional e 1 ministro, DIas Tofolli julgou que o CPP veda a prisão pelo disposto no art. 283.

      Quanto à insegurança jurídica, a culpa é exclusivamente do STF. Por 21 anos após a promulgação da Constituição se permitiu a prisão. Em 2009 o STF passou a proibir.

      Demorou 7 anos e o STF viu que fez errado e voltou ao entendimento de 21 anos que se permitia a prisão.

      Aí se passou apenas 3 anos e o STF mudou novamente o entendimento em 2019 para proibir.

      Justamente para se dar uma basta às indas e vindas do STF que muda de lado ao sabor dos ventos e dos réus, que se fez necessário o Congresso dar um basta e deixar explícito que a vontade do legislador e do povo brasileiro é de que se execute a sentença assim que o processo esgota os recursos na 2ª Instancia e o réu apele aos tribunais superiores.

      Foram 3 mudanças em 31 anos. A primeira ocorreu após 21 anos; a segunda ocorreu após 7 anos; e a última ocorreu em apenas 3 anos. O STF é a fonte de toda a insegurança jurídica no Brasil e cabe ao Congresso dar um basta.

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