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Analfabeto novamente

Na minha opinião, depois que alguém é alfabetizado —ou passa pelo letramento, como dizem as autoridades educacionais mais modernamente— não mais pode retornar à condição de analfabeto. Mas depois que me mudei pra Bali, descobri que não é bem assim. Quando você se muda pra um país de língua completamente diferente da sua, você volta à condição de analfabeto, ao menos parcialmente.

Por definição, analfabeto é que ou aquele que desconhece o alfabeto, ou não conhece nem o alfa nem o beta, isto é, não sabe nem ler nem escrever, ou quem não tem instrução primária. Por extensão, o cidadão que é muito ignorante, bronco, de raciocínio difícil. Analfabeto é o sujeito que pratica o analfabetismo: estado ou condição de analfabeto; falta de instrução, sobretudo da elementar (ou seja, ler e escrever).

Faço toda essa digressão em torno de letrados e iletrados porque agora me sinto como um analfabeto. Percebi minha situação na primeira vez em que fui a um restaurante —o que aconteceu na mesma noite em que cheguei, em 18 de dezembro de 2012. Alguém me ofereceu um nasi goreng. Devo ter olhado para o pelayan(garçon) com cara de idiota; ele logo se dispôs a me explicar o que é o tal nasi goreng: arroz frito com legumes, peixes, lula e outros frutos do mar, às vezes com um ou dois ovos fritos em cima.

Foi a primeira vez que me assaltou a questão do analfabetismo. De como a gente se sente impotente diante das coisas mais prosaicas da vida: fazer compras num supermercado, colocar gasolina no carro, fazer uma consulta médica e outras ações que fazem parte do cotidiano de qualquer pessoa. Foi pensando nisso que comecei a tentar aprender a língua. E logo descobri algo mais assustador ainda: existem duas línguas básicas, o bahasa indonésio e o idioma nativo de Bali.

Também descobri uma coisa bem curiosa. Comecei a anotar palavras que são muito semelhantes ao português (algumas são exatamente iguais): fase, festa, final, foto, gás, gitar (guitarra, violão), alínea, alkohol, almanak, âmbar, amplop (envelope),  keju, klab (clube), koléga, anagrama, cokelat (chocolate), dadu (dados), bola, apotik (botica, farmácia). Há muitas outras, mas a lista seria exaustiva. Não fiquei surpreso, mas interessado.

Eu sabia que os portugueses haviam os primeiros europeus a chegar às ilhas da Indonésia —isso em 1512. A ânsia lusitana pra dominar as fontes do lucrativo comércio das especiarias, nos séculos 15 e 16, e os seus esforços missionários cristãos simultâneos, resultaram no estabelecimento de fortalezas e entrepostos comerciais, e de um forte elemento cultural português que permanece na Indonésia até aos nossos dias. E isso fica claro no idioma.

Desde as minhas descobertas idiomáticas e da minha sensação de regressão analfabeta, fiquei pensando que, se fosse honestamente instruído, seria possível recuar no derradeiro instante, decidindo por não tomar contato com o mundo esotérico, exótico, sanguinário e selvagem das pessoas que sabem ler e escrever. Pelo menos em indonésio. Até porque o analfabeto tem pelo menos uma virtude: não comete erros gramaticais ou ortográficos.

Também penso que o alfabeto foi inventado por um analfabeto. Ah! E o mundo abunda em alfabetos fora de uso, cujo código se perdeu —além dos povos que nunca tiveram alfabetos e mesmo assim foram felizes, como os nossos índios e os ingleses e norte-americanos (estes dois últimos adotaram o alfabeto romano e dominaram basbaques do planeta inteiro e que tinham alfabetos próprios). Antigamente, os analfabetos eram os seres que não iam à escola; agora, são os mais escolados. E descolados. Analfabetos, graças a Deus!

Redação

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