Banalizar o anormal, por Daniel Gorte-Dalmoro

Banalizar o anormal

por Daniel Gorte-Dalmoro

No metrô, o desempregado convertido em empreendedor – colega de classe de Amoêdo, Huck, véio sonegador da Havan e tantos outros – anuncia máscaras de “neopraime” – uma por três, duas por cinco, seca em meia hora, aceita crédito e débito – enquanto se certifica de que não há segurança na plataforma da estação. No vagão, todos com máscara, alguns usam modelos lisos, outros tentam fazer arte com a tragédia, outros mostram qualquer insígnia que julgam relevante: a empresa que paga seu salário, o time de futebol, a fé que finge acreditar – mas que precisa gritar com tamanha ostentação porque sabe que é só um engodo e no fundo se está sozinho. Então é natal, e o que você fez? Quantos conhecidos você não vai mais poder encontrar, de quantas pessoas próximas você não pode se despedir? Então é natal e o ano termina… vai começar outra vez?

 

A vida volta ao normal. A curva da morte, que vinha anormal, se anormaliza um pouco mais – normal. A morte é banal, as gripes são banais, as pestes são banais. Banal se tornou o desdém pela vida: isso não é resposta inconsciente ao medo da morte, é a dessacralização do fim que a todos espera – quem teme a morte e pensa na vida (para além da sobrevivência econômica) não é produtivo, não gera lucro: a pandemia provou isso, a gripezinha provou isso. Se a morte é banal, a vida não deveria sê-lo. Mas nestes tempos anormais, somos forçados a normalizar – mais do que antes – tanta coisa que não deveríamos. Pois é anormal (é inédito) a contabilidade em tempo real do número de infectados e de números de mortos em todo o mundo. É anormal ver gráficos de cadáveres, curvas que sobem, barras que formam uma escada para o sem sentido, para o absurdo – tudo isso em horário nobre, junto com os resultados do futebol. Sim, admito, é um avanço termos noção do risco invisível mas palpável que nos cerca como num ataque medieval de bárbaros infiéis (por mais que comam com talheres, leiam Aristóteles e tenham fé) contra uma cidadela de pretensos civilizados – mas é também a banalização do ser humano, transformado em estatística, curvas, barras, números.

Na rua passo por pessoas sem máscara. Há as que se negam a usá-la por recusarem a ciência assim como recusam a realidade: não raro são pessoas de fé e certezas cegas – por isso a ciência não os agrada, ela é feita de verdades transitórias, devires ébrios e tentativas arriscadas. E há as que não a utilizam porque confiam na ciência e acreditam em deus: não, elas não são mais fortes que ninguém: tomar banho no esgoto, dormir com os ratos e comer restos de lixo não as tornaram imunes aos vírus; não, deus não as protege com especial atenção: deus as utiliza para brincar de todo poderoso e exercitar seu lado sádico; a recusa dessas pessoas em usar máscara é atender a esse desejo de um deus que faz pouco caso das pessoas marginalizadas pelos pretensos eleitos – e pelos eleitores.

Uma pessoa sem máscara, encostada num muro da marginal Tietê (esse fluxo que um dia foi um rio, tinha peixes e vida), uma garrafa de corote ao lado, me pede ajuda porque tem fome. Há todo um absurdo nessa cena, banalizada, normalizada (normatizada?), que nos rouba pouco a pouco a nossa humanidade e nos faz ver pessoas como números numa curva macabra – não, não falo dos mortos por Covid, falo do balanço das empresas e do quanto uma pessoa pode produzir e render em um trabalho que lhe suga a vida em troca da sobrevivência. Hoje, no Brasil, foram mais de 680 mortos e tantos milhões de não-vivos; amanhã, no primeiro grupo, pode ser alguém com nome, pode ser você, pode ser eu.

Redação

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