Bolsonaro e o dispositivo pós-colonial, por Túlio Muniz

Bolsonaro e o dispositivo pós-colonial, por Túlio Muniz

A retórica de Bolsonaro em relação à França é calculada. Não é gratuita a acusação de “mentalidade colonialista” que ele faz ao presidente francês Emmanuel Macron na crise das queimadas na Amazônia. 

Trata-se de estratégia ultranacionalista usada por governantes e militares brasileiros sempre que precisaram recorrer à figura de ameaça externa. Um discurso acionado em outras épocas, como fizeram Getúlio Vargas ao evocar a ‘ameaça comunista’ para perseguir adversários, nos anos de 1930, copiado pelos militares golpistas de 1964, que um ano antes, entre fevereiro e março de 1963, foram protagonistas ativos no episódio conhecido por ‘Guerra da Lagosta’, conflito diplomático com mobilização militar de parte a parte entre o Brasil e… a França. 

A ‘Guerra da Lagosta’ foi uma espécie de laboratório para o golpe de 1964. 

Instados por armadores brasileiros que desde 1955 ingressaram no mercado internacional da pesca através da captura de lagosta ao nível industrial estabelecida pelo norte americano Davis Morgan no Ceará, governo e militares mobilizaram embaixadores e frota naval e aérea para reprimir barcos franceses que incursionavam por águas nacionais em busca de lagosta. 

O assunto ganhou os jornais da época, nos quais era clara a disseminação de discurso nacionalista cuja hegemonia era disputada tanto por Goulart quanto pelos militares, que em vários episódios da ‘Guerra’ agiam à revelia do Executivo. Ambos os setores visavam apoio da população envolvida pelo que chamei dispositivo pós colonial (DPC). 

A ‘Guerra da Lagosta’ foi resolvida no âmbito diplomático sem que um tiro fosse disparado, mas teve consequências internas a posteriori que levaram ao Golpe. Portanto esteve longe da mera ‘carnavalização’, como simplificou, erroneamente, o historiador Marco Antonio Villa no Jornal da Cultura de 26 de Agosto*.

Está Bolsonaro a recorrer ao DPC para ostentar imagem de potência sub-imperialista (cf. Ruy Marini) que o Brasil nunca abandonou, e que sempre teve apoio da grande mídia nativa, ela mesma umbilical e financeiramente ligada ao Estado?

Tal como em 1963, Bolsonaro e os militares reificarão o discurso ufanista e ultranacionalista e preparam um golpe militar, com apoio de parcela significativa da população? 

O desgaste acentuado do governo por ausência de política econômica, pela crise ambiental e a corrosão da Lava Jato não indicam que Bolsonaro chega ao final do mandato. Vai depender de manter mídia alinhada para emissão de discurso do tipo DPC, com potencial de coerção em torno de ‘inimigo externo comum’, no que as grandes redes de TV se esmeram desde sempre – a Globo, em particular. 

É preciso aguardar o desfecho das crises simultâneas (a ambiental, a econômica e a política), e  a iminente queda da Lava Jato e o posicionamento da mídia para saber se o governo supostamente democrático chega ao fim do ano sem recorrer ao autogolpe.

Túlio Muniz – Jornalista, Historiador, Dr. Em Sociologia pela Universidade de Coimbra.

*Ver Muniz, Túlio de Souza, O OURO DO MAR (2014), Annablume Editora.

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