Ciência política já apontara as contradições do Ministério Público criado em 1988, por Álvaro Miranda

Ciência política já apontara as contradições do Ministério Público criado em 1988

por Álvaro Miranda

Mesmo antes das consequências e repercussões do que ficou conhecido como “mensalão”, na década passada, e agora da operação Lava-Jato, a ciência política já apontara um dos problemas centrais da crise envolvendo hoje o Ministério Público – qual seja, quem controla o controlador – questão clássica que vem de Aristóteles, no século V a. C, quando o filósofo já encarava como dilema, por exemplo, o critério da escolha dos juízes. 

Ou seja, definições e normatividades sobre como deve ser o sistema judiciário são objeto da filosofia política desde tempos remotos – e não de casuísmos de uma jabuticaba brasileira que faz com que leigos e messiânicos acreditem na teoria crítica como algo incentivado por gente de esquerda ou por defensores de corruptos.

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Dentre os diversos temas das pesquisas do campo de políticas públicas a partir da década de 1980, um diz respeito ao estudo das instituições e do desenho das organizações estatais no âmbito da teoria democrática. Subtema importante desta teoria é o da “accoutability”, palavra sem tradução para o português, disseminada no Brasil durante o auge do receituário neoliberal do Consenso de Washington, na década de 1990. Resumindo, trata-se de um conjunto de mecanismos e elementos visando à prestação de contas para fins de responsabilização.

O termo ficou muito vinculado à fiscalização contábil e à transparência das ações dos agentes públicos, congruente ao espírito do chamado “gerencialismo público”, voltado para maior eficiência dos programas de governo, a fim de atender aos ditames de organismos internacionais. Entretanto, a teoria democrática dos últimos anos mostrou, a partir de trabalhos de autores de diversos países, como a noção de “accountability” não se restringe aos problemas de responsabilização administrativa e financeira, mas sim também sendo extensiva ao mérito das ações públicas no que diz respeito a seus motivos e suas consequências.

No âmbito das ações das corporações jurídicas, tal problema se torna nevrálgico hoje num contexto em que, de um lado, reina um juspositivismo arraigado e, de outro, o neoconstitucionalismo como contraponto ao positivismo jurídico, com suas diversas ideias flexibilizadoras da lei escrita, como, por exemplo, a noção de “mutação constitucional”. Esta sugere, grosseiramente resumindo, mudanças na aplicação da lei sem modificar o texto da lei. 

No imaginário coletivo carente de informação e ciência, a nevralgia desse problema, para esconder dores e cicatrizes, acaba agravando a febre da fetichização do Direito como processo pretensamente isento e justo apartado da Política. Mistificação essa que esconde as intenções políticas e partidárias na propalada isenção técnica. Tanto na teoria como na prática, tal tendência pode conferir ao Direito, para o bem e para o mal, a natureza de arma política na guerra entre grupos e classes sociais – e não de instrumento civilizatório de busca da justiça para todos de forma equânime. Assim, o que é nevralgia acaba implicando a administração de remédios para enfermidades sem cura.

Em pouco mais de uma década quatro trabalhos têm sido notáveis a respeito dos problemas envolvendo o Ministério Público, três deles do pesquisador Fábio Kerche. O primeiro, sob o título “Autonomia e Discricionariedade do Ministério Público no Brasil”, foi publicado pela  Dados – Revista de Ciências Sociais (Rio de Janeiro, 2007, vol. 50, nº 2, pp: 259-279), do então Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

O autor mostra o processo constituinte de 1987/1988 que resultou no desenho institucional do atual Ministério Público, com suas contradições, avanços e recuos, num momento em que a sociedade brasileira tentava recuperar importantes elementos de salvaguarda da democracia como resposta a vinte anos de ditadura. Dentre outros elementos, estavam em jogo a garantia dos direitos fundamentais e instrumentos para coibir abusos do estado e de agentes públicos. 

Resumindo, Kerche argumenta que, de forma atípica, o Ministério Público acabou se fortalecendo e se autonomizando sem uma “accountability” correspondente sobre seus atos por parte de outros agentes ou organismos estatais ou da sociedade. “A argumentação de que a defesa de certos interesses pelos promotores por meio da ação civil coincide com a vontade do cidadão não significa que estes controlem a instituição”, observa ele (p. 275).

Diz mais: “(…) o argumento de que os promotores e procuradores somente cumprem a lei, não precisando, por este motivo, de instrumentos de accountability, não se sustenta. É a possibilidade de exercer a discricionariedade, somada à autonomia, aos instrumentos de ação e ao amplo leque de atribuições, que transforma o Ministério Público em uma organização pouco comum à democracia.” (p. 277)

Em trabalho posterior, Fábio Kerche aprofunda a reflexão, porém lembrando que o problema não diz respeito somente ao Ministério Público, mas a qualquer setor não eleito das burocracias estatais. Trata-se do livro “Virtude e Limites: Autonomia e Atribuições do Ministério Público no Brasil” (São Paulo: Edusp, 2009).

Afirma ele que “embora seja prevista uma fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial pelo Parlamento, esta se restringe a questões de responsabilidade do Tribunal de Contas e não se traduz no acompanhamento das atividades propriamente processuais do Ministério Público.” (p. 50). Enfim, os políticos, representantes eleitos, não podem fiscalizar e rever atuações dos integrantes do Ministério Público porque não existem instrumentos legais de “accountability” para essa finalidade.

No mais recente trabalho sobre o tema, o autor participa como organizador, ao lado de João Feres Júnior, do livro “Operação Lava Jato e a democracia brasileira” (São Paulo, Editora Contracorrente, 2018). É uma coletânea de oito artigos com títulos bastante sugestivos: “As consequências econômicas da Lava Jato” (Luiz Gonzaga Belluzzo); “Operação Lava Jato, Judiciário e degradação institucional” (Leonardo Avritzer); “Judiciário e crise política no Brasil hoje: do mensalão à Lava Jato” (Fernando Fontainha e Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima); “Os impactos da Operação Lava Jato na Polícia Federal brasileira” (Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Lucas e Silva Batista Pilau; “O impacto da operação Lava Jato na atividade do Congresso Nacional” (Maria do Socorro Souza Braga, Flávio Contrrera e Priscilla Leine Cassota); “A Lava Jato e a Mídia” (João Feres Júnior, Eduardo Barbabela e Natascha Bachini) e “Lava Jato: escândalo político e opinião pública” (Érica Anita Baptista e Helcimara de Souza Telles).

Na introdução, Kerche e Feres Junior observam o seguinte: “O problema é que assistimos nos últimos anos, e em especial na Operação Lava Jato, a hipertrofia de burocracias de Estado que tem uma conexão fraca com a legitimidade do voto, combinada com seu insulamento. Instituições como O Ministério Público, a Polícia Federal e, de maneira mais complexa, pelo menos do ponto de vista da teoria política, o Poder Judiciário ganham a arena pública, definindo prioridades e escolhendo seus alvos sem, contudo, prestar contas e sem serem passíveis de punição pelos cidadãos – aquilo que a Ciência Política chama de accountability.” (p. 13)

Para terminar, não se pode deixar de mencionar um livro anterior a este trabalho, que é o de autoria de Alzira Alves de Abreu, “O que é o Ministério Público?” (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010). O último capítulo, sob o título “A politização e suas consequências”, traz uma ironia por conta do nome mencionado pela autora – ironia relacionada à Caixa de Pandora, que foi o golpe que derrubou Dilma Rousseff da Presidência da República em 2016.

Nesse capítulo escreveu a autora quatro anos antes do início da Lava Jato, com a ironia aparecendo como profecia uma década antes: “A independência concedida pela Constituição de 1988 ao Ministério Público tem muitas objeções. A instituição tem recebido críticas por fazer uso partidário de suas prerrogativas legais, e muitos jovens procuradores têm exercido suas funções politicamente engajados.” (p. 99). 

O agouro de nevralgia aparece subjacente no texto, sem que a autora soubesse que a menção iria se transformar numa ironia: “O jurista Miguel Reale Jr. declarou que a falta de critérios objetivos para as ações do Ministério Público permite que promotores e procuradores desrespeitem a lei e manipulem investigações de acordo com suas convicções pessoais (o Globo, 1/4/2004).” (p. 99). Seria ocioso dizer aqui o porquê da ironia, mas só para refrescar a memória, lembrando o protagonismo de Reale Jr. no traumático processo de impeachment da presidente da República.  

Álvaro Miranda – Jornalista, Mestre e Doutor pelo Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da UFRJ

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  • Tem também o trabalho de Rogério Arantes: Ministério Público e política no Brasil (2002), no qual ele identifica o messianismo presente no discurso dos procuradores.

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