Em Alagoas existem inúmeras lagoas, mas três delas se destacam. A primeira é a Mundaú, ao norte; a segunda é a Manguaba, ao sul; e a terceira, que se encontra entre as duas, é o coração de Dirceu Lindoso, grande como uma ria, tão profundo que não pode ser assoreado. Nele os cabanos tomam banho, nele os quilombolas fazem um porto e os camponeses se reúnem para futurar. Se Alagoas é o que se ama e dói, Dirceu está entre o que se ama.
Foi em Maragogi, ainda menino, que ouviu atentamente o seu avô contar as histórias de uma utopia armada. Sabia exatamente em qual curva do mangue existiu um mocambo de escravos fugidos. Em Maceió, quando criança, olhava para a cidade mirando dunas do Trapiche que não mais existem, charcos e alagados que com o correr das várias décadas virariam asfalto. Era como se fosse um historiador desde menino. Olhava para os limites da cidade com a curiosidade de quem sabia que assim como as pessoas, a cidade também se movia. E que a cidade muitas vezes se move soterrando dunas, charcos e pessoas. Era como se olhasse para a cidade antecipando uma luta contra o esquecimento do que seria soterrado.
Formou-se em Direito, mas a redação em jornais clandestinos e o estudo de línguas estranhas o interessavam mais. Disse-me que Lindoso significa fronteiriço, e que o nome vinha de uma região na fronteira de Portugal com a Espanha. Sua avó morreu sem deixar de falar galego. Para Dirceu, galego e português eram praticamente a mesma língua. Foi assim que escreveu o romance Póvoa-Mundo (1981)[1], premiado nacionalmente. Confessou-me que a escrita é sempre uma forma de invenção e que os rios da História, Antropologia, Sociologia, Economia e da Poesia são feitos todos da mesma água. Olhava para o mapa da Alagoas Boreal (visto em um museu da Holanda) e revirava mais de mil e uma gavetas do Museu Nacional (em busca de documentos) com a atenção idêntica a de quando ouvia histórias contadas por Sinhá Miné, Flor da Mata e Felismina – na praia de Barra Grande. Para ele, a história oral era tão importante quanto a que consta em cartórios e registros oficiais.
Ainda jovem escreveu regularmente no jornal A Voz do Povo, viajou pelo interior contribuindo para a formação de sindicatos rurais, defendeu os indígenas Wassú Cocal e estudantes, participou da luta dos operários da fábrica de tecido de Fernão Velho, tornou-se dirigente do Partido Comunista e foi preso em 1964, logo após o golpe. Depois de meses no cárcere, prosseguiu nos sombrios anos seguintes escrevendo em diversos jornais e atuando no partido. Além da escrita jornalística, se dedicou ao trabalho de tradução[2], a pesquisas de cunho histórico-cultural e foi convidado para ministrar cursos de Antropologia na Universidade Gama Filho e na PUC do Rio de Janeiro.
Talvez por ser alheio a fronteiras, seguiu o caminho intelectual por fora do convencional da carreira acadêmica. É um pensador tão vasto que, apesar da grande quantidade de publicações, ainda existem muitos escritos inéditos para serem descobertos. Sua obra-prima é o livro A Utopia Armada (1983)[3]. Um clássico da historiografia alagoana e brasileira. É um livro sobre o sonho cabano papa-mel, um sonho que, assim como a obra de Dirceu, permanece vivo.
[1] LINDOSO, Dirceu. Póvoa-Mundo. Editora José Olympio, 1981.
[2] Traduziu autores como György Lukács, Althusser, Max Weber e Piaget.
[3] LINDOSO, Dirceu. A utopia armada: rebelião de pobres nas matas do tombo real. Editora Paz e Terra, 1983.
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Que beleza de crônica e de personagem. Agora poderei conhecer a obra de Dirceu Lindoso. E que nome, hein...