Hannah Arendt, o filme de Margarethe von Trotta, é ele todo o contraste entre as personalidades da filósofa política que somente concebe o humano sob a condição do pensamento e do burocrata que se comporta como ser sem alma, peça de uma engrenagem cujo sentido bárbaro ele jamais se dispôs a perscrutar. Arendt no filme ilustra a natureza reflexiva do humano com Sócrates e Platão. De fato, com eles ganhamos a plena consciência dessa cláusula da nossa condição que, não cumprida, faz do humano coisa. Mas além do pensar, são necessárias ainda a coragem de dizer e a coragem de agir sob o móvel do pensamento, enfrentando o senso comum e a convencionalidade, correndo o risco de sepultar o próprio prestígio, o risco da solidão intelectual e pessoal. O contraste entre o ser da manada e a autonomia do ser pensante é o que importa na história.
A violenta reação, na época, à tese de Arendt sobre a banalidade do mal, à sua visão de Eichmann, que não era o Mephisto tonitruante, sagaz e ardiloso que ela imaginara, mas um homem medíocre incapaz de dizer qualquer coisa que não fosse clichê, é ela mesma ilustrativa da tese de Arendt. O enredo mostra que a virulência da reação tinha muito a ver com o fato de que as pessoas ou não haviam lido o texto, ou não refletiram sobre ele, ou eram preguiçosas o suficiente para abandonar convicções e crenças antigas e empreender um mínimo de esforço para assimilar o que as contrariava. Ela dizia que Eichmann não pensava, e seus críticos tampouco estavam pensando, e alguns sequer lendo a tese que criticavam.
A última fala do filme é uma autocrítica de Arendt. Admite que errou, mas não pelo que foi duramente atacada nos artigos sobre Eichmann. Escrevera (anos antes, em “As Origens do Totalitarismo”) sobre o mal radical, mas dava-se conta então de que o mal não podia ser banal e radical: “somente o bem é radical”.
Arendt usa radical no mesmo sentido que Marx o fizera: ser radical é ir às raízes, mas o mal é raso. Ele pode ser extremo, como o nazismo mostrou, mas não radical nesse sentido. Raso quer dizer que se você me fez o mal eu te devolvo o mal. Se você praticou um crime, o Estado lhe deposita em uma prisão imunda e você se torna tanto invisível quanto supérfluo. Se você não tem onde morar e constrói sua casa em um terreno que ninguém usa, o Estado destrói sua vida e rasas autoridades fazem rasas comemorações: “a operação foi um sucesso” (sic).
Já para ser justo é preciso mais. É preciso ser radical – ir às raízes, o que o pensamento pode fazer. É preciso refletir, andar por aí com os sapatos dos outros, pensar que, estando em um conflito que põe seus interesses em jogo, você deve tomar a decisão que seria a mesma se estivesse no outro polo do conflito. Isto é o que alguns filósofos morais denominam de reversibilidade, diferente de reciprocidade, que consiste em meramente retribuir na medida do que foi recebido, o estágio jurídico e moral primitivo da lei de Talião. Mas o que Arendt vê é mais assustador. Além ainda do superficial, o mal pode ser um não sentido. Nós pensamos há séculos, diz ela, que o mal há de ter sempre algo que o justifique, que pode ser torpe, mas é um sentido, como o egoísmo. Às vezes não tem nenhum. Simples assim: nenhum sentido.
Não é muito difícil estabelecer algumas pontes entre a contribuição de Arendt e nossa experiência política e social contemporânea. O indivíduo incapaz de perceber que o certo e o errado não derivam do convencional, de alguma ordem normativa positiva, de dogmas religiosos, mas da consciência que é atributo imanente da natureza humana, está atrás de nós na fila do banco, ou mora no andar de cima, ou foi eleito para o Parlamento. Está por aí o indivíduo que acredita que, uma vez que alguém maltratou a sociedade, deve ser bastante maltratado em retribuição e que isso vai tornar a sociedade mais segura. Está por aí o sujeito que pensa que sabe o que Deus pensa e inclusive recebeu dele um mandato para controlar os desejos e certas partes do corpo do outro. Está por aí o sujeito que pensa que algo que o que lhe disseram que era certo sempre vale mais do que os direitos das pessoas. O assustador é que eles não estão entrando para a História, como Eichmann, apenas porque não calha.
Quando um dos juízes pergunta a Eichmann se nunca vivera uma contradição entre o dever e a consciência, ele responde que o dever está acima.
Nada é mais perigoso neste mundo do que não pensar.
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Adorei seu texto. Foi o que
Adorei seu texto. Foi o que pensei quando vi o filme e tive vontade de escrever. Mas não o fiz. Porque é o que penso. É triste que tantas pessoas não façam qualquer esforço para pensar. Preferem acatar ideias que lhes chegam por qualquer canal que lhes seja simpático, Tomam como suas essas ideias e as repassam com incrível superficialidade, sem questionar os valores implicados, as inverdades embutidas, as ideologias disfarçadas, as contradições com sua própria vontade.
Chocante, especialmente porque a capacidade de pensar ede decidir por conta própria me parecem ser qualidades fundamentais do humano.
Acho que o certo e o errado
Acho que o certo e o errado derivam, sim, de um convencional, mas aquele convencional que é parte constitutiva do ser humano. Desconsiderá-lo não é deixar de ser humano, mas sê-lo de uma maneira perversa. Infelizmente acho que estes estão entrando sim para a história, estão fazendo a história e é preciso disputá-la com eles. É preciso que o pensamento triunfe sobre a barbárie do automatismo.