Injuriado, por Fernando Nogueira da Costa

Injuriado

por Fernando Nogueira da Costa

Injuriado foi alvo de injúria. Recebeu algum tipo de ofensa e/ou xingamento. Ficou acometido por um sentimento de raiva, ocasionado por insatisfação com desigualdade.

Injúria é a ação de ofender a honra e a dignidade de alguém. Tem origem na palavra injustiça. Corresponde àquilo injusto, o contrário daquilo direito.

A etimologia de juro vem do latim: jus, juris, jure, com significado de “direito”. Juro é o direito à compensação pelo custo de oportunidade de terceiros alavancarem seus negócios e lucrarem com seu dinheiro em seu lugar.

O lucro obtido por dinheiro emprestado é, em parte, compartilhado com quem emprestou dinheiro a juros. Se o juro esmagar o lucro operacional, ou seja, este não for suficiente para superar as despesas financeiras, o empreendimento deve ser evitado.

É memorável a peça teatral O Mercador de Veneza de autoria de William Shakespeare, uma comédia trágica escrita em 1598 – e filmada em 2004. Quando chega a notícia de os navios do devedor terem se afundado em alto-mar, ele fica impossibilitado de pagar o empréstimo. Fica insolvente e vai a julgamento por ter assinado um contrato, oferecendo como garantia um pedaço de sua própria carne.

Essa típica “servidão voluntária” do devedor ao credor tem duas características. Na hora de pedir o empréstimo, há o Efeito do Excesso de Autoconfiança. O tomador de crédito superestima, sistematicamente, seu conhecimento do negócio e sua capacidade de prognosticar o futuro. Superestima a perspectiva de sucesso.

Na hora de pagar o empréstimo, surge o Viés de Autoatribuição. Eventual sucesso é visto como resultado natural do próprio desempenho. Caso ocorra um fracasso, ele é atribuído aos outros ou às circunstâncias desastrosas. Culpa o credor, ou seja, ao banco!

Escutei o argumento de um companheiro de esquerda: “é muito difícil, no Brasil, não demonizar a banca privada. Falo como leigo, mas defendo por principio ideológico a estatização do sistema financeiro e a tributação do lucro”.

É um mau argumento desacreditar uma ideia ao associa-la a um grupo malvisto na “câmara de eco”. A crítica à cobrança de juros não é só baseada em crença ideológica, mas também em religiosa, desde a do cristianismo medieval até a das finanças islâmicas.

Já é hora de a esquerda superar essa típica demonização do sistema bancário do qual todos somos clientes. A possibilidade de trabalhadores intelectuais, inclusive operando os robôs das fábricas, acumularem capital financeiro para manter seu padrão de vida familiar na aposentadoria é um avanço civilizatório face à exploração industrial da força de trabalho sem direitos da cidadania na “época do Marx” (1818-1883).

Somos componentes do sistema capitalista emergente das interações entre os subsistemas de pagamento, crédito e gestão de dinheiro. Ele se compõe de capital, dívida, empreendedorismo e inovações. Devido a estas, vivemos o “adeus ao proletariado”!

A expressão “proletário” teve origem entre os romanos, para descrever o cidadão pobre, útil à República apenas para gerar “prole” (filho), capaz de servir ao Exército – e ser morto. No século XIX, a palavra “proletariado” passou a ser usada para identificar a classe sem propriedade. Não possuía meios de produção capazes de gerar seu sustento, precisando vender sua força de trabalho para quem os possuía.

Esse é o contrato social do capitalismo: a casta dos mercadores oferecer emprego e pagar salário aos trabalhadores contratados. Para tanto, necessita de alavancagem financeira, motivada pelo aumento da rentabilidade patrimonial do capital próprio com uso de capital de terceiros. Propicia aumento da escala da produção e gera empregos.

Cada vez se gera menos emprego, face à demanda dos desocupados, em função da automação/robotização. Seria o caso de interromper a revolução tecnológica 4.0 com o 5G, internet-das-coisas, PIX, home-office, etc.?!

Haverá desemprego tecnológico massivo, portanto, necessidade de RBU (Renda Básica Universal) para os expulsos da linha de produção sem capacitação profissional digital.

Quem financia a inovação tecnológica motivadora de empreendimento? Quem propicia a acumulação e a gestão de dinheiro para os trabalhadores intelectuais, inclusive artistas, sobreviverem com o mesmo padrão de vida em sua fase inativa ou idosa? Quem propicia um sistema de pagamentos eletrônicos? Meus companheiros de esquerda necessitam entender o que é viver em um sistema de mudanças processuais – e não revolucionárias em um “golpe circunstancial” contra contratos e direitos…

Ludismo contra o capital financeiro?! A moeda se desmaterializou…

Curiosamente, a demonização dos bancos por cobrarem juros parece ser análoga ao ludismo – a atitude de quebrar máquinas. O ludismo foi um movimento contrário à industrialização e à mecanização do trabalho.

Ele teve sua origem na Inglaterra, no início do século XIX, quando acreditava ser a tecnologia a razão do desemprego e da miséria. O luddismo é qualquer ação oposta ao progresso tecnológico. A etimologia vem de Ned Ludd, líder operário dos “quebradores de máquinas”.

Na Idade Média, usura era utilizada como sinônimo de juro excessivo. Era uma prática proibida, pois os cristãos devedores dos judeus, na hora de os pagar, apelavam para o dogma: “dinheiro não pode gerar dinheiro”.

Naquela época, cobrança de juros era considerada uma forma de se explorar uma pessoa passando por uma situação difícil. Mas qual seria a motivação de realizar os empréstimos financeiros sem cobrança de nenhuma taxa?!

Os pensadores mais lúcidos começaram a achar justo o credor receber uma parte dos lucros obtidos com seu empréstimo, sob a forma de juros. Então surgiu a diferença entre juro e usura. Juro era a taxa justa ou não pecaminosa e usura se referia à cobrança de taxas superiores ao limite máximo pagável. Seria exigida por um indivíduo mesquinho, com a avareza de agiotas. Denotava ambição, ganância, cobiça de lucro em demasia.

Hoje, talvez devamos denominar “a demonização dos bancos” de Chesneísmo, em homenagem ao François Chenais, um grande crítico do neoliberalismo e estudioso do processo de financeirização do capitalismo à luz da obra de Karl Marx. Este jamais imaginou o que seria o capitalismo financeiro no século XXI…

É uma mitificação falar em “fase do capitalismo financeiro” ou “financeirização”. Bancos foram criados desde o pré-Renascimento. Financiaram a conquista das Américas. A relação de produção capitalista é encontro de o capital-dinheiro e o trabalhador livre para vender sua força de trabalho. O sistema capitalista, antes da revolução industrial exploradora da força de trabalho na linha de produção, já era financeiro e comercial.

Um companheiro se mostrou injuriado com tudo o que a sociedade paga no dia a dia, via cartão de crédito, cheque especial, empréstimos consignados, prestações diversas, empréstimo a pequenas e médias empresas, reciprocidades etc. Estimou em 21% do PIB. “Talvez hoje estejamos com 18% PIB. Convenhamos, ainda é um grande assalto”.

É uma conta difícil de fazer… Não conheço um dado oficial do BCB ou das Contas Nacionais do IBGE a respeito do valor total de pagamentos de juros em um ano.

O saldo do crédito total cresceu, nominalmente, de R$ 3,265 tri em dez/18 para R$ 3,478 tri em dez/19, ou seja, R$ 213 bi. As concessões médias mensais no ano passado foram R$ 15,5 bi. Daí, em doze meses, somaram R$ 186 bi. Representariam o “crédito novo”. O restante (R$ 213 bi – R$ 186 bi = R$ 27 bi) seria a capitalização em juros sobre o saldo de dez/18? Isso seria só 0,3% do PIB!

A taxa de juro média mensal foi 24,3% aa, oscilante em torno desse patamar ao longo do ano. Os prazos médios das concessões foram 201 meses, igual a 16,8 anos. Houve 3% de inadimplência sem pagarem os juros contratados.

Para aumentar o problema – e o entendimento da realidade sistêmica –, o spread médio foi 18,8 pontos percentuais. O companheiro teria descontado o recebido em juros pela sociedade nos diferentes fundings, isto é, investimentos fontes de financiamento?

O spread sobre o custo de captação dá cobertura à perda com inadimplência, carga tributária (IOF/PIS-CONFINS), FGC, despesas administrativas. Descontando tudo isso, sobra a margem financeira do Indicador do Custo de Crédito (ICC). Este parece ser o objetivo da “denúncia do capitalismo financeiro”, contumaz em certos círculos.

O BCB estima o ICC médio em 20,97 p.p., em 2019. Dentro dele, a margem financeira foi 2,78 p.p. A média da margem financeira componente do ICC, de 2017 a 2019, foi 11,8%.

O saldo do crédito do SFN acumulou R$ 3,736 tri, em agosto de 2020, e o estoque dos títulos públicos (dívida mobiliária) estava em R$ 3,790 bilhões. Se houve gasto de 3% do PIB (R$ 215 bi) com juros nominais acumulados no ano corrente (fator condicionante da variação acumulada na DBGG de 13% no ano), esse percentual (3% do PIB) será uma proxy muito distante do gasto de juros com o crédito?

Enfim, é um cálculo complexo por ter múltiplas variáveis componentes. É tal como o sistema capitalista. Necessitamos o entender – e não demonizar – para transformar.

Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Golpe Econômico: Locaute ou Nocaute da Economia Brasileira” (2020). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/
E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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  • O capitalismo, só o demoniza quem o compreende, e não é possível compreender o capitalismo dentro dele. Para entende-lo havemos que sair dele e aprecia-lo de fora, seguindo o curso do dinheiro desde a sua formação enquanto meio de troca até que ele se transformasse em representação de valor.

    O juro para o cobrador tem sentido diferente de juro para o tomador.
    Em princípio quem tomava dinheiro a juros não sabia o preço do dinheiro.
    Só sabia como gastá-lo, assim, dizia com as mãos juntas :"Juro que te pago de volta com uma compensação e garantia", e o emprestador feliz dizia, "Tome, leve lá que aqui tem mais" (com os dedos cruzados nas costas torcia para que o tomador nunca o pagasse o principal e sim os juros, pois o dinheiro que ele emprestava não era dele, era de alguém que lhe deixara em confiança e a quem ele JUROU que devolveria com uma parte a mais )

    Consideremos pois, que ninguém emprestaria dinheiro a quem não tivesse garantias ou que visivelmente não pudesse pagar. Assim, é de se supor que quem trabalhava duro sabia o valor do dinheiro e não tinha a quem pedir emprestado. Por isso é que se supõe que quem tomava a juros não sabia o custo do dinheiro.

    Quem tomava muito dinheiro e não tinha como pagar, os reinos, por exemplo, que não tinham noção do valor do dinheiro a não ser para gastá-lo, tributavam brutalmente a população enquanto mantinham seus luxos palacianos e financiavam guerras, conquistas e descobertas. Se a população não desse conta de pagar, o governante ficava refém e passava a organizar as finanças do reino conforme as leis que o seu credor fazia aprovar. Assim se fizeram os nobres de ocasião, que trocaram títulos de nobreza por perdão de dívidas. Assim se destituíram reinados e se impuseram repúblicas que herdaram dívidas e populações obrigadas pelo pagamento desde o berço. No Brasil, só quem nasceu em 2005 experimentou o prazer de não nascer devendo.
    Quem emprestava o dinheiro apenas o mantinha circulando, desvestindo um santo para vestir outro. Emprestava grandes quantias do dinheiro que não tinha, só tomava conta ( de grandes comerciantes, por exemplo, que não podiam manter consigo seus lucros e precisavam de liquidez), mantendo os donos do dinheiro somente com promessas e compensações em " juro que seu dinheiro está em boas mãos". Se todos os depositantes em confiança resolvessem tirar das mãos dos banqueiros o dinheiro a eles confiado, o esquema caia, a bancarrota chegava e, naturalmente o emprestador, já rico, ou "cascava fora" ou tinha que procurar sua turma num outro continente. A história é testemunha.
    Assim se fizeram os bancos: das sobras e da confiança. Numa vista rasa pela rede vamos encontrar uma farta explicação sobre a formação do capital através dos tempos, bem como quem foram seus principais financiadores.
    Tendo-se pois, uma pequena noção de como se fizeram fortunas e reinados, não há como confiar ou mesmo apreciar um sistema que privilegie o juro em detrimento do resgate de uma dívida ou mesmo, que só sobreviva bem e ricamente enquanto o mundo está endividado e em ruínas. O capitalista é um ser parasitário e não há o que mais ele tema que um mundo sem classes e camadas.
    Estamos a ver uma grande festa do capitalismo, com a realização de lucros nunca dantes experimentados, graças à pandemia. Melhor, só uma grande guerra. E o capital não recuará, se não, contribuirá com alegria para que ela aconteça.

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