Mal-estar com a democracia se espalha pelo mundo; por Aldo Fornazieri

No trânsito do século XX para o século XXI, a democracia triunfou como forma universal de organização política dos governos. Havia uma expectativa, não só de sua expansão, mas também de que ela pudesse despertar o entusiasmo dos diversos povos.  Mas o que vem se observando é, senão uma desilusão, uma apatia. A democracia passa por dificuldades em quase todos os lugares. Na Europa, as últimas pesquisas disponíveis indicam um descontentamento e queda no apoio à democracia. A Primavera árabe não conseguiu viabilizar novas democracias, talvez com exceção da Tunísia onde o quadro político ainda é instável. Na Rússia, não desabrochou com vigor. Na China há dúvidas de que estejam ocorrendo avanços significativos. Nos Estados Unidos, a democracia também vive seus problemas, seja por conta da crise que gerou mais pobreza, seja pelo radicalismo dos republicanos e pelos impasses políticos no Congresso.
Na América Latina, a pesquisa do Instituto chileno Latinobarometro, divulgada em 2012 relativa a 2011, revela uma queda significativa do apoio à democracia. Na região a média do apoio à democracia caiu de 61% para 58% em relação à medição anterior. Guatemala e Honduras acusaram a maior queda, de 10 pontos; Brasil e México de 9 pontos; Nicarágua, 8 pontos e Costa Rica e Venezuela, 7 pontos. O apoio à democracia no Brasil ficou em 45%, acima apenas da Guatemala (36), México(40) e Honduras (43). Outro dado médio relevante da região mostra que 47% avaliam que a democracia tem permanecido invariável, 27% dizem que ela piorou e 21% dizem que ela melhorou.

A pesquisa mostra que, em regra, a situação econômica – crescimento o decrescimento – produz impacto importante na avaliação da democracia, sendo o seu principal problema. O segundo maior problema é o da violência, que ganhou o status de maior preocupação dos latino-americanos. Em relação a 2010, a importância dos problemas econômicos diminuiu um ponto, passando para 37%, enquanto que e a da delinquência subiu um ponto, chegando a 28%. Os temas que aparecem com maior destaque como problemas que a democracia não resolve são, pela ordem, corrupção, falta de justiça social e distribuição de renda, falta de transparência ao Estado, ausência de participação cidadã e fraqueza dos partidos políticos. Estudos mais recentes mostram que, apesar de a América Latina ter reduzido a pobreza na última década, continua sendo a região mais desigual e mais violenta do mundo. Dos 10 países mais desiguais do mundo, 5 estão na região, e com 9% da população mundial, a América Latina concentra 27% dos homicídios anuais.
Na Europa, a crise em curso, reduziu os níveis de bem estar e de direitos dos cidadãos, aumentou a pobreza fragmentando a coesão social. Alguns analistas sugerem que a democracia europeia sofreu uma espécie de sequestro: nos momentos agudas da crise, mas também em outros momentos, os governos vêm adotando decisões segundo o que ditam os mercados e as agências de classificação de risco. Os cidadãos europeus têm visto seus governantes cada vem menos como seus representantes, e cada vez mais como representantes do FMI, do Banco Central Europeu e do sistema financeiro global. As eleições europeias têm varrido os governantes de plantão. Uma das poucas exceções é a Alemanha, que garantiu nova vitória a Angela Merkel. Os novos governantes, liberais ou de centro-esquerda, rezam pelas mesmas cartilhas de seus antecessores derrotados.
Além de parecer estar a serviço do poder econômico e financeiro dominante no mundo, outros fatores que provocam o mal-estar com a democracia podem ser sintetizados nos seguintes pontos: desprestígio dos políticos, dos partidos e dos parlamentos; protestos nas ruas contra os efeitos antidemocráticos e antissociais das crises, incapacidade dos governos em solucionar os problemas ou de preveni-los, declínio do valor da igualdade como identidade da democracia, exasperação do egoísmo e da ganância dos mercados e radicalização das tendências individualistas do capitalismo anárquico orientado para o consumo e para o hedonismo fugaz.
Alguns estudiosos afirmam, com razão, que outro fator que gera embaraços com a democracia é a hipocrisia dos políticos e do poder. A política internacional dos Estados Unidos (símbolo da democracia) é a expressão maior dessa hipocrisia. Mas os governantes e os partidos, de modo geral, mentem para os cidadãos e se especializaram em usar discursos manipulatórios e pouco transparentes. A hipocrisia e a mentira solapam a confiança nos políticos e nas instituições levando à descrença, ao abstencionismo, à indiferença e a valores antidemocráticos.
A falta de confiança e o déficit de legitimidade nas instituições e nas políticas democráticas fez surgir aquilo que alguns consideram uma nova qualidade da democracia: a democracia monitória. Os monitores da democracia são assimilados às instituições sociais e políticas que monitoram, fiscalizam, cobram e denunciam práticas ineficientes, corruptas e não transparentes do poder e dos políticos. Os monitores passaram a fiscalizar também e cada vez mais as instituições privadas. Para se ter uma ideia do que se está falando basta citar o Idec, a Rede Nossa São Paulo e a Transparência Brasil como exemplo de monitores.
O fato é que a democracia monitória quebrou o monopólio do discurso político, desmascarou a ambiguidade manipuladora dos políticos e exigiu-lhes um maior compromisso com a transparência, a eficiência e honestidade. Infelizmente, esta cobrança não vem tendo uma contrapartida positiva por parte dos políticos e dos partidos, que buscam expedientes pouco dignificantes para justificar suas atitudes. Isto faz crescer a desconfiança dos cidadãos. Se a desconfiança dos eleitores em relação aos eleitos e às instituições sempre existiu, em maior ou menor grau, o fato é que hoje ela se transformou em mal-estar.
Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política
Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

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  • Governos reféns ou em

    Governos reféns ou em dificuldades em promover mudanças que não sigam a cartilha.

    A grande imprensa é a maior defensora deste "capitalismo mundial" contra governos, daí ela ser macartista com a esquerda que são os que tentam se afastar desta dependência das grandes corporações,é o neoliberalismo e seus mantras de "estado leviatã", "livre mercado", "gestão", "disciplina de mercado",  e privatizações.

    Esta é a grande luta atual, os movimentos difusos pelo mundo, cada uma com a sua especividade e tendo como pano de fundo a insatisfação com a representatividade dos seus parlamentares que se omitem quanto às mudanças pretendidas.

    Para complementar a leitura deste post: "A guerra política entre capital e trabalho"

  • Aldo, nada sobre a imprensa,

    Aldo, nada sobre a imprensa, o braço divulgador de mentiras, sabotadora de governos populares, hoje é a pior instituição da sociedade, tanto em ditaduras, o que é normal e aceitável, mas também em democracias, onde ela se vangloria de ser a fiscalizadora dos governos, confirmando que em todas as sociedades, está a serviço do poder, da concentração das riquezas, da manutenção da ordem vigente!


    Digo, que se fosse possível reformar a sociedade, a primeira seria a imprensa!

  • É, democracia é uma m.
    Bom

    É, democracia é uma m.

    Bom mesmo é ditadura!!! Aí não tem "mal-estar"... na dúvida, executa o tio! O prof. deve estar com saudade do Videla, do Pinochet; ou deve ser fã do "Chico Science" do Oriente!!!

  • Meu DEUS!!! O texto parece

    Meu DEUS!!! O texto parece acreditar que temos democracia plena no mundo. Como se os poderosos e financistas não tivessem tomado de assalto as camada decisórias da maioria dos governos dos países. É um texto típico de leitor de veja, da profundidade de um pires. 

  • Democracia ou Aristocracia?

    Não vivemos uma democracia pura, cujo principal modelo seja a antiga "democracia" ateniense (entre aspas porque somente os homens livres podiam participar - sem escravos e mulheres).

    Talvez nos Cantões da Suíça se pratique a democracia.

    Mas o que temos no mundo da democracia representativa é, na verdade, uma "Aristocracia", que seria o governo dos "melhores".

    Na verdade, sempre foi assim.

    Antes, os "melhores" eram os nobres.

    Depois, os "melhores" eram os ricos.

    Agora, os "melhores" são eleitos pelo povo.

    Mas são eles que governam, e não o povo, como seria uma autêntica democracia.

    O problema principal é que os "melhores" são, muitas vezes, os piores em termos de ética e cidadania.

    Como resolver?

    Impedindo os piores de se candidatarem (a Lei da Ficha limpa seria uma das maneiras - poderia ser mais rigorosa).

    Construindo canais que aproximem o povo dos seus representantes (com a Internet isso está cada vez mais viável)

    Aumentando o número de consultas populares (também a Internet poderá, no futuro próximo, permitir maior agilidade).

    Entre outras.

    A solução seria, assim, caminharmos cada vez mais em direção à Democracia, e não o oposto.

    Pois, em um país, o que há de melhor e, portanto, de verdadeiramente Aristocrático, é o seu povo.

  • Talvez o mais adequado seria

    Talvez o mais adequado seria argumentar que a democracia, na forma como ela é praticada no mundo capitalista, precisa ser aperfeiçoada, incluindo mecanismos de maior participação popular, formas de coibir o abuso do poder econômico e permitir uma distribuição mais justa da riqueza produzida pela humanidade.

    Não acho que a população esteja saturada de democracia, pelo contrário, acho que há um anseio pela ampliação da democracia, o que significa maior igualdade de oportunidade para todos.

     

  • Como alguns já apontaram o

    Como alguns já apontaram o problema real é que essa democracia que temos está longe de ser suficiente e nem poderia ser chamada de democracia. Fora os vícios, do sistema como o financiamento de campanhas por pessoas jurídicas. 

    O caminho é mais participação, que é praticamente nula hoje em dia, aproximando a população das decisões políticas. E onde for realmente o caso de manter ou ter técnicos tomando decisões, garantir que os mesmos tenham conhecimento e capacidade para o exercício da posição, e não que estejam ali, apenas, por serem amigos do rei (ou da rainha).

  • Democracia no capitalismo é utopia

    O sistema consegue colocar preço em tudo, inclusive nos mandatos e nos votos. No fim, irão governar sempre em favor de quem detém o capital para comprá-los.

     

  • Acho que o que está em crise

    Acho que o que está em crise é a democracia representativa e não a democracia em si.  Essa democracia do século XX esta em crise e não esta conseguindo fazer frente aos desafios desse novo século. Só  um caminho: mais representação popular, mais mecanismos de participação popular devem ser criados se isso não acontecer  a tentação autoritária  das populações sempre aparecerá e então será caminho livre  para as ditaduras. 

  • Democracia em crise ?

    Aldo,

    de forma geral, concordo com o teu texto.

    Mas me parece que a história da humanidade não é uma linha reta.

    Temos avanços e recuos naturais dos embates entre as posições assumidas pelos diversos grupos.

    Mas estamos avançando.  Os grandes movimentos populares no mundo árabe, na Europa, nos Estados Unidos e aqui na América Latina são testemunhas da insatisfação com que são conduzidas as políticas públicas.  Já fazia tempo que não víamos tais manifestações.  Isso é participação democrática. Isso é democracia.

    Exageros, descaminhos, enfrentamentos fazem parte do jogo democrático. A origem diversa dos protagonistas e suas participações levam a movimentos desconexos até o aparecimento de líderes que empolgam as massas e dão unidade às idéias apresentadas anarquicamente.

    Vamos torcer e trabalhar para que o processo continue com a necessária depuração e avanço para a continuidade do caminho democrático.

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