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Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
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Médiuns verdadeiros e médiuns que fraudam – qual a diferença?, por Dora Incontri

A multidão faz o médium perder a cabeça. A idolatria e o incenso acabam por despertar a vaidade, a vontade de poder e… a superficialidade, a fraude e até a perda completa de mediunidade. 

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Médiuns verdadeiros e médiuns que fraudam – qual a diferença?

por Dora Incontri

Por dever de ofício, ontem me dei o desprazer de assistir ao Fantástico – coisa que não fazia talvez há uns 30 anos – para ver a reportagem sobre o médium Fernando Ben. E faço aqui as minhas reflexões sobre o tema, que podem servir aos não espíritas, para maiores informações sobre mediunidade e aos espíritas, para um posicionamento mais crítico e mais de acordo com os critérios propostos por Kardec.

Primeiramente, o fenômeno mediúnico é algo muito delicado, cheio de nuanças, que requer metodologia própria para análise – e quem primeiro criou esse método foi Kardec, embora a ciência mainstream não considere nem o fenômeno como objeto válido de investigação, nem Kardec como pesquisador, cujas proposições sejam aproveitáveis. A questão é que quem vive o fenômeno – sobretudo quem o experimenta fortemente como médium desde criança – não tem outra fonte de explicação, orientação e canalização dessas faculdades a não ser o espiritismo de Kardec ou outras correntes mediúnicas afins. Senão, é remédio psiquiátrico para quem está ouvindo vozes. Embora os fenômenos alucinatórios derivados de patologias psíquicas sejam muito diferentes de manifestações mediúnicas.

O que ocorre, porém, que diversamente do espiritismo inglês ou norte-americano, Kardec percebeu que elementos éticos interferem na fluidez, veracidade e possibilidade mesmo da mediunidade. Por isso, estabeleceu critérios: a mediunidade tem que ser gratuita, não se deve extrair dela nenhum tipo de vantagem, nem mesmo fama, posição, ganhos secundários; a mediunidade deve estar a serviço do bem e do próximo. Mesmo assim, nunca se tem a garantia de que vá acontecer algo, pois depende dos espíritos quererem e poderem se manifestar.

Por outro lado, Kardec reservava aos médiuns um lugar de discrição, recolhimento e mesmo anonimato. Considerava que as melhores reuniões mediúnicas seriam as domésticas, íntimas, com pouca gente, com muita harmonia de pensamento. Enquanto o mestre francês dava essas recomendações e não divulgava os nomes dos médiuns que trabalhavam com ele – inclusive para protegê-los tanto de uma fama envaidecedora, quanto de possíveis perseguições – nos países anglo-saxões, a mediunidade era vendida como espetáculo público. No livro História do Espiritismo de Conan Doyle (ele mesmo, o autor de Sherlock Holmes), aparecem biografias de inúmeros médiuns, todos participantes desse modelo de mediunidade-espetáculo, e quase todos apelaram algum momento para a fraude, apesar de também terem produzido fenômenos comprovadamente verdadeiros. Então, veja-se, segundo as pesquisas e as narrativas de Doyle, nem todo o médium que frauda, frauda sempre. E nem todo médium que produz coisas verdadeiras, nunca deixa de fraudar. A única coisa que pode impedir um médium de fraudar é a sua integridade moral, que se constitui em desinteresse absoluto e em capacidade de dizer não, quando nada acontece.

Ora, no Brasil, o movimento espírita brasileiro, embora se diga predominantemente kardecista, e embora condene em sua grande maioria a comercialização explícita da mediunidade, é presa de um atavismo de dependência religiosa que acaba por produzir possíveis desgraças como a de João de Deus ou desse médium Fernando Ben (aliás ambos não se declaram kardecistas!) – que não sabemos se de fato frauda o tempo todo ou se frauda algumas vezes. Pelo menos de algumas vezes parece que há evidência – eu mesma já tinha visto e examinado diversas denúncias. Isso terá de qualquer forma de ser verificado e investigado. A questão é a situação de fragilidade e entrega em massa das pessoas que estão em desespero, seja por causa de uma doença (como com João de Deus), seja por causa da morte de um ente querido.

O luto é um processo natural e sabemos que o luto por um filho é extremamente doloroso. É claro que a busca por uma resposta, por um conforto, é também natural e cada qual acha seu caminho de ressignificação da perda.

Entretanto, o espiritismo oferece respostas filosóficas para a morte, sem necessidade de um espetáculo mediúnico público e oferece e possibilidade de comunicação com os mortos de maneira generalizada, natural, íntima, sem necessidade de se procurar médiuns estrelas, com milhares de pessoas à volta.

Por causa de uma institucionalização engessada por que passa o espiritismo no Brasil, perdeu-se aquela espontaneidade e segurança de pequenos grupos trabalhando livremente, com intimidade e desinteresse. A multidão faz o médium perder a cabeça. A idolatria e o incenso acabam por despertar a vaidade, a vontade de poder e… a superficialidade, a fraude e até a perda completa de mediunidade.

Então, se cabe a todo espírita honesto denunciar a fraude, cabe a todo espírita consciente saber que todos participamos da fraude pela maneira como a mediunidade é encarada e praticada, longe dos critérios seguros de Kardec.

Entretanto, mesmo esses critérios devem ser reavaliados no contexto do mundo contemporâneo. Nós, brasileiros, temos o mau hábito de colocar tudo a nosso respeito – inclusive intimidades – nas redes sociais. Europeus e americanos são mais cuidadosos a esse respeito. Então, no caso de uma verificação de dados que supostamente vieram do além, há que se checar o que está na rede ou não. Menos desespero, mais reflexão. Menos idolatria, mais espírito crítico.

E pode-se falar com os mortos também através de sonhos e com a voz do coração.

Nota: o manifesto que foi mostrado no Fantástico, assinado por lideranças espíritas, eu também assinei. Mas lá não há menção explícita ao Fernando Ben, refere-se apenas a fraudes em geral. 

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