O capitalismo coopta os movimentos populares?, por Cristiane Alves e José Bulcão

O capitalismo coopta os movimentos populares?

por Cristiane Alves e José Bulcão

Com raríssimas exceções, nenhum movimento popular, pelo menos nestes últimos cem anos, foi, de fato, popular. O povo é visto sempre como o excedente passível de descarte. Os sacrifícios represados.

A História não respeita as massas. Apenas as toleram como meio de produção e reprodução do meio. O povo é o anonimato em três dimensões.

E somando-se a isso o fato de que vivemos o fim da era humanista e o consequente crescimento do fascismo e seus subprodutos (eugenia, intolerância por origem, religião ou gênero).

Obviamente que o fascismo bolsonarista, por ser instintivo e anti científico, não se importa em ser sustentável. Acredita que pode manter em moto contínuo a exploração, que crê inesgotável, nos mesmos moldes das parábolas infantis com ovos de ouro, feijões mágicos e elementos sublimes.

Nesse contexto, a atual pandemia do COVID -19 parece ter vindo sob medida às necessidades neomalthusianas. Difícil projetar quantos ainda irão morrer por conta dessa política.

Por hora, se falarmos exclusivamente sobre a covid-19, pode-se dizer que eles devem se sentir orgulhosos com a marca de mais de 36 mil mortes em menos três meses a partir do primeiro óbito registrado oficialmente.

Essa política está escancarada desde quando o país fez a escolha pelo projeto bolsonarista e, é importante frisar que esse projeto não se resume à figura de jair bolsonaro (propagandista e animador de auditório que distrai a massa enquanto a máquina de triturar gente cumpre sua missão).

A figura de bolsonaro cristaliza esse projeto, que vai além e conta com inúmeros instrumentos e atores nos setores públicos e privados, desde a equipe ministerial, capitaneada por paulo guedes com sua política econômica de terra arrasada, passando por uma rede de financiadores externos, indo de empresários desqualificados como o tal véio da havan até as grandes corporações internacionais, em especial a cadeia produtiva e o sistema financeiro norte-americanos, cujos interesses de pilhagem de nossas riquezas eles nem fazem mais questão de esconder. Estes últimos estão perfeitamente representados por donald trump, que também age como garoto-propaganda e MC, a quem bolsonaro se espelha e por quem se humilha e nos humilha publicamente como país e nação.

Ok. Mas para as populações que estão à margem de nosso sistema de privilégios, iminentemente branco, patriarcal, elitista, oligárquico e escravagista, esse genocídio eugenista não é exatamente uma grande novidade.

Este contigente populacional já sofre a ausência de proteções, direitos e garantias mínimas do estado não é de hoje nem de ontem. Estão alijados do contrato social, que chamamos de democracia, há muitos anos, em certas ocasiões há séculos, onde o caso mais emblemático é o da esmagadora maioria da população negra brasileira.

A pandemia potencializa esse processo genocida de uma maneira cruel, visto que são justamente as populações das classes mais baixas que já estão expostas ao risco de contágio, por viverem em locais de grande adensamento populacional, serem usuários dos transportes públicos, dependerem de um sistema de saúde pública que vem sendo negligenciado a olhos vistos por esse governo e por um absurdo teto de gastos implementado na era temer e ainda por cima não têm outra alternativa de subsistência que não seja sair de suas casas para garantir o sustento de suas famílias.

O isolamento social não deveria ser encarado como uma alternativa divisionista só aplicável aos privilegiados, mas sim como um mecanismo de proteção à saúde e à vida de toda a população. Infelizmente, sejamos francos, não é. Na conjuntura de um governo irresponsável como o atual, menos ainda.

A necropolítica bolsonarista agrava ainda mais esse problema quando nega, por exemplo, o acesso ao auxílio emergencial a milhares de cidadãs e cidadãos, seja por estarem em categorias excluídas do programa, seja por estarem com seus pedidos sob análise ou simplesmente negados sumariamente.

Nossa defesa pela vida e nosso apelo para que as pessoas fiquem em casa, apesar de válida e imprescindível, não consegue atingir os que estão fora do sistema de privilégios, muito por omissão dolosa desse governo, mas também por razões históricas.

Diante dessa tragédia toda, fica a dúvida sobre a pertinência dos atos como os de hoje. Há muitas questões em jogo, algumas de ordem prática, outras mais profundas, de ordem filosófica até.

Mesmo diante da dificuldade de se chegar a uma conclusão firme sobre apoiar ou não movimentos democráticos nesse período em que a pandemia ainda está em ascensão, há pelo menos dois pontos que se mostram muito claros.

Primeiro é que, mesmo que se venha a considerar as manifestação pública nesse momento como um equívoco, não seria honesto agir para desestimular ninguém a aderir. Essa deve ser uma decisão muito particular de cada um, mas que deve ser tomada de forma consciente, inclusive sobre riscos tanto pessoais quanto a terceiros.

Em segundo lugar, não seria justo que aqueles que estão dentro do sistema de privilégios e que apoiam e incentivam as manifestações deixem os que estão fora dele abandonados à própria sorte. Estes devem, portanto, se mostrar solidários e comprometidos, sendo os primeiros a se colocarem na linha de frente.

No dia-a-dia esses mesmos que insuflam as massas às ruas hoje, são os que não conhecem as penas de vida impostas a elas. Sobretudo porque estão assegurados por direitos e tutelas que as massas não possuem.

Então para concluir, que estes que acreditam, estimulam e cobram que tais manifestações ocorram, sejam mais do que mentores intelectuais inertes. Sejamos povo.

Cristiane Alves

Cristiane Alves

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