O Clube Militar e o espectro do autoritarismo que ronda o Brasil, por Lênio Streck

Por Lenio Streck

No Conjur

Abstract: Clube Militar: como levar a sério um clube que não respeita as suas próprias regras? Talvez por isso queiram acabar com a Constituição!

Em manifesto, o Clube Militar classificou o Poder Judiciário brasileiro como “corporativista e destoado da realidade brasileira”, um órgão que causa “incerteza jurídica e sensação de impunidade”. No mesmo documento, o tal clube chama a elite empresarial e política de “medíocre” e diz que o próprio Estado como tal é “politicamente partidarizado, aparelhado e tomado pela corrupção”.

Talvez o leitor desavisado esteja pensando que este ensaio é mais uma distopia, similar àquela que escrevi aqui na ConJur. Lamentavelmente, caro leitor, não é o caso. O tal Clube Militar realmente divulgou esse manifesto.

Por mais absurdo que seja, não me surpreende em absolutamente nada. Afinal, como esperar que um clube que não respeita as próprias regras respeite as regras do jogo que a democracia impõe?

Ups. Explicarei.

O parágrafo 2º do artigo 2º do regulamento do própriaquo Clube Militar — ah, antes que a turma da pós-verdade recuse os fatos em favor das interpretações, o link está aqui — diz que “[o] Clube manter-se-á estranho a matéria de religião, política partidária ou discriminação de qualquer natureza”. Bom, o clube até não disse algo sobre discriminação, mas o seu presidente, sim. Ele é o general Mourão, candidato a vice de Bolsonaro. Sua declaração discriminatória foi feita quando ainda presidente, uma vez que se licenciou do cargo no dia 10 de setembro.

Além do mais, embora o clube não fale diretamente em candidato(s), até agosto atuava, conforme se vê na notícia da Folha de S.Paulo, em favor de Bolsonaro. O manifesto endossa as propostas de Bolsonaro. Tudo esculpido em carrara. O que é um bicho que tem pelo de gato, olho de gato, rabo de gato, pé de gato… Se não for gato, é uma gata. Leão é que não é.

Pois é. Para quem está disposto a rasgar o próprio documento que lhe sustenta, rasgar a Constituição não significa nada. Como se diz, rasgar a CF é fichinha. Aliás, o presidente do clube (até setembro) defendeu uma constituinte sem povo, feita por notáveis, proposta que só se realizaria se não existisse um Supremo Tribunal Federal, porque absolutamente inconstitucional.

Certo, chega de ironias. A situação é grave demais para brincadeiras, mais grave ainda para omissões. Então, em outras palavras, e dando nome aos bois, o que quero dizer aqui é mais ou menos o seguinte: pouco me importa se você gosta ou não gosta do Bolsonaro, do Haddad, do Alckmin, do cabo Daciolo, de quem for. Um dos motivos pelos quais eu também lutei pela democracia foi que pudéssemos escolher nossos próprios representantes. Então, repito, deixo claro: se você gosta do Bolsonaro, o problema é seu.

O ponto é que já não mais se trata de discutir votos para este ou aquele candidato; estamos presenciando em 2018, 30 anos após a promulgação da Constituição Cidadã, um candidato líder nas pesquisas que dedica votos no Congresso ao torturador Ustra, cujo vice, que defende uma Constituinte sem a participação do povo, desdenha de negros e índios, diz que 13º é jabuticaba e tem de extinguir, é presidente de um Clube Militar que vai à imprensa fragilizar o Judiciário e o Estado de Direito.

É mesmo isso que queremos?

O Grande Inquisidor de Dostoiévski já dizia: “Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso”.

Talvez seja isso. Talvez a democracia esteja exigindo demais de nós. Cidadania, responsabilidade moral e política, respeito pelo Estado de Direito e pela legislação, separação de Poderes… Tudo isso é muito difícil. Como disse o grande inquisidor a Jesus, a culpa é sua, que exigiu demais de todos nós! Pois é.

O problema, leitor, é que o Clube Militar não vai ser capaz de nos salvar. Não adianta recusar os deveres que a democracia impõe a nós porque os achamos muito difíceis. Porque somos humanos.

Somos humanos. Sartre dizia que, enquanto humanos, somos condenados à liberdade. Nossa liberdade parece ameaçada, então, penso ser mais adequado colocar nos seguintes termos: somos seres condenados à escolha.

Isso significa que, até mesmo quando, ingenuamente, abrimos mão de nossa tão difícil liberdade, estamos fazendo a escolha de não escolher.

Sim, avisemos aos navegantes: o espectro do autoritarismo ronda o Brasil. Só não vê quem não quer. Aliás, as ameaças à democracia nem veladas são. No manifesto, nada e ninguém presta: nem o Judiciário nem os empresários. Pergunto: afinal, quem é bom? Quem presta?

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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