Ou tiramos consequências políticas desse vírus… ou pior, por Matheus da Cruz e Zica

Ou tiramos consequências políticas desse vírus… ou pior

por Matheus da Cruz e Zica

É certo que a crise do Covid-19 será um marco geracional em escala global, um referente histórico para organizarmos nossa experiência coletiva no tempo. Das muitas consequências que podemos tirar para nós em relação à condição de confinamento forçado, uma das mais impressionantes é a desaceleração do tempo, relativizando o ritmo do capital, da medida do rendimento, do time is money. Em “tempos normais”, é tempo de rendimento alheio. É preciso correr justamente porque há um time gasto pelo empregado que não é money para ele, nos marcos da mais-valia imperante. Essa parada no tempo do capital pode ser muito instrutiva e precisa ganhar uma formalização social, precisa ser compreendida de modo compartilhado.

O maior líder da nação, o então presidente, deu também uma aula aos brasileiros de uma característica muito marcante de nosso país: a banalização da morte. O Covid-19 mexeu nesse terreno da morte e nos trouxe outra perspectiva importada de outros países que passaram pelo pico da transmissão do patógeno antes de nós: é preciso cuidar da vida coletivamente diante da letalidade desse vírus. Essa mentalidade importada de se importar com a vida do outro deveria trazer alguma desestabilização para a banalidade com que tratamos a morte dos brasileiros pobres em nosso cotidiano em “tempos normais”. Desestabilizar o raciocínio do miliciano presidencial em declarações como: “o brasileiro tem que ser estudado, ele mergulha no esgoto e não acontece nada com ele”.

Quando ouvi isso tive vontade de ver o autor da frase fazendo isso, chafurdando-se num daqueles esgotos a céu aberto do Rio de Janeiro, onde suas milícias ordenam a vida dos miseráveis que àquelas margens vivem. Melhor ainda se estivesse acompanhado de sua trupe. São uns hipócritas. Esse “brasileiro”, tal qual utilizado na frase no singular e em tom generalizante evidentemente não inclui o próprio autor dela. Não inclui as elites que protege e que por elas é protegido. Esse brasileiro genérico da frase é o representante do povo brasileiro, em sua imagem clássica de sofrido, de fé, do futebol e de samba, e mais nada. Essa entidade vista de longe pelas elites como um espécime curioso e bom de tê-lo assim. Esse bom brasileiro de Bolsonaro é aquele que não requer do Estado ajuda nenhuma, que não faz ao patrão reivindicação alguma. É o povo grato por ter um prato de comida… e por ter um esgoto para nadar. Esse é o brasileiro que pode morrer, na lógica bolsonarista. É o brasileiro que morre todo o dia e não se vê.. E não dói.

Um bom exercício pós-quarentena para os brasileiros seria precisamente esse: passarem a se preocupar com a vida dos demais brasileiros. Ver como vivem os brasileiros que nadam no esgoto e ao se aproximarem notarem que eles adoecem sim e morrem… entender que podia ser diferente.

Ou não aprendemos nada e essa quaretena passa e fica por isso mesmo. Como passou o golpe contra a Presidenta Dilma, como passaram os dois anos do mandato fracassado de Temer, como passaram os robôs do Whatsapp para a campanha mentirosa de Bolsonaro, como passaram as provas inequívocas do Intercept contra a Lava-jato, como passaram os dias de Lula na prisão para que não “atrapalhasse” as eleições, como passou o primeiro ano de desgoverno da milícia no poder.

Não restam dúvidas quanto ao fato de que o Covid-19 é o menor dos problemas para o Brasil e talvez para o mundo. O que se está gestando aqui no Brasil há pelo menos uns cinco anos é uma conjunção que pode “fazer escola” e ser transposto para outros espaços nacionais. No âmbito da segurança estatal truculência policial contra cidadãos; no âmbito da religião, reforço de um fundamentalismo obscurantista; na economia, neoliberalismo e desregulamentação das empresas; na política, farsa representativa. Não há que se enganar, o Brasil hoje é uma vitrine para o mundo do capital, uma miragem do futuro, mesmo que pela via da distopia.

Se as feiúras genocidas das milícias têm uma rejeição muito maior entre os brasileiros, o que muitas vezes atrapalha a família Bolsonaro em sua manutenção do poder, por outro ângulo duas grandes redes de comunicação as sustentam dando ares de normalidade ao mundo surreal em que temos vivido. A Record e suas afiliadas estão com Bolsonaro em sua aposta na credulidade ingênua de boa parte da população. Um cristianismo simplista, persecutório, misógino e sectarista emerge no Brasil de uma maneira inimaginável, contrariando a figura serena e liberal do próprio Cristo. De outro lado a Globo, com seus repórteres de linguajar formal, de recursos visuais modernos e aparente dinamicidade traz um tom de normalidade à situação brasileira já que topa a atrapalhada família Bolsonaro pelo serviço sujo que ela se presta junto com Paulo Guedes à destruição de qualquer resquício de função social  por parte do Estado brasileiro.

Publicado originalmente no Blog do Pensar a Educação
Redação

Redação

Recent Posts

Trump considera sanções contra países que deixem de usar dólar

Taxação cambial, tarifas e restrição a exportações estão entre punições avaliadas pela equipe do candidato…

8 horas ago

Governo federal confirma continuidade da homologação de terras indígenas

Força-tarefa composta por ministérios, Funai, AGU e Incra busca acelerar processo; quatro processos devem ser…

9 horas ago

A conexão Nuland–Budanov–Tadjique–Crocus, por Pepe Escobar

A população russa deu ao Kremlin carta branca total para exercer a punição máxima e…

10 horas ago

Elon Musk vira garoto propaganda de golpe que pagou por anúncio no X

Golpe inventa uma nova empresa de Elon Musk, a Immediate X1 Urex™, que pretende enriquecer…

10 horas ago

Governo Milei segue com intenção de lançar ações do Banco de La Nacion no mercado

Apesar da retirada da lista de privatização, governo Milei reforça intenção de fazer banco oficial…

10 horas ago

Prêmio Zayed de Sustentabilidade abre inscrições globais

Prêmio para soluções sustentáveis passa a aceitar inscrições em português; fundos de premiação chegam a…

10 horas ago