Ser ou não ser Charlie, eis a questão, por Ruben Bauer Naveira

Ser ou não ser Charlie, eis a questão (*)

por Ruben Bauer Naveira

Eu sou Charlie, porque vejo a defesa da liberdade de expressão como um dever. Há controvérsias, entretanto. A mim é difícil aceitar que no meu país um editor de jornal possa distorcer o noticiário salvaguardado pela liberdade de imprensa enquanto que um blogueiro seja condenado por difamação por ter acusado aquele mesmo editor de… distorcer o noticiário. Também não me é nada confortável pressupor que a liberdade de um cartunista para satirizar as religiões seja, em essência, a mesma liberdade de um humorista para insinuar que uma modelo negra obteve um papel de destaque “apesar de ser negra”, ou para associar uma senhora humilde doadora de leite materno às ejaculações de um ator pornográfico. Para completar o quadro, tem um monte de gente com quem eu gostaria de estar junto que diz “je ne suis pas Charlie”, e um monte de gente com quem eu detestaria estar junto que diz “je suis Charlie”.

Está difícil ser Charlie, e imagino que também esteja difícil não sê-lo.

Em meio a tanto paradoxo, contradição e ambiguidade, minha única certeza é a de que estamos tentando lidar com uma condição inédita, século XXI, a partir de pressupostos culturais que já morreram e não sabem, século XX. O mundo mudou mas a ficha ainda não caiu.

Dois valores estão em choque: de um lado, a liberdade de expressão, de outro, o respeito à dignidade e à privacidade, ambos a serem defendidos em nome da cidadania, mas que no entanto encontram-se destinados a cada vez mais conflitar. Nenhuma solução simplista dará conta de resolver isso.

A sério, alguém acredita que seja factível traçar alguma fronteira, um limite, entre aquilo que pode ser satirizado por um humorista e aquilo que não pode?

Nessa hora turva, as analogias podem ser um auxílio. A que me ocorreu foi a seguinte (ressalvo que não se trata de uma proposta, e sim de uma mera analogia para nos ajudar a refletir):

No âmbito do judiciário, as varas de família constituem uma especialização da justiça para a arbitragem de conflitos sensíveis e sutis em que cada caso é um caso, e em que as disposições legais são mais contexto que imperativo.

Talvez fosse o caso de se cogitar a criação de uma nova especialização jurídica para a abordagem de supostas ofensas tanto na mídia formal quanto na internet, algo como o “Direito de agravo e desagravo” (há de aparecer algum nome melhor do que esse…), de modo a que as nuances e sutilezas de cada caso, bem como a sua contextualização, sejam adequadamente levados em conta, assim como ocorre no Direito de família.

No plano do genérico, do abstrato, inexiste uma resposta última para o dilema de ser ou não ser Charlie. Já no plano do específico, do concreto, caso a caso, os conflitos podem ser tornados bem mais manejáveis, e é nessa direção que se deveria voltar a atenção.

(*) Como já há pelo menos uns cinco textos diferentes com esse título, entendi que virou domínio público.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  • Não entendo por que tanto

    Não entendo por que tanto tempo se perde com isto.


    NÃO SOU CHARLIE. PONTO.


    Não posso estar do lado de hipócritas que atrás deste conceito abstrado "liberdade de expressão " pode passar por cima de outros direitos valorosos dos povos.


    Onde estão os tais EU SOU CHARLIE quando os povos africanos, latinos, asiáticos foram massacrados, surrupiados e oprimidios pelos Europeus?


    A verdade é dura, mas o povo europeu, num tempo não tão distante assim, por onde passou deixou um RASTRO DE SANGUE, ÓDIO, DEVASTAÇÃO e DESEJO DE VINGANÇA.


    Não apoio e não concordo com atos terroristas. Posso entendê-los quando contextualizo no tempo da história.


    Também não concordo com o terrorismo oficial. escondido embaixo da diplomacia.


    Quando os povos oprimidos atacam são considerados Terroristas.


    Os povos europeus e americanos quanto atacam estão se defendendo preventivamente?


    Faça-me o favor.


    NÃO, NÃO SOU CHARLIE, de forma alguma.


    Sinto pelo que aconteceu com estes jornalistas, apesar de desrespeitarem um povo que representa quase metade da população mundial. Mas sinto mais pelos milhões, talvez bilhões de oprimidos pelas políticas economicas e de estado dos povos ditos assim "DESENVOLVIDOS".


     

  • COVARDES DA CANETA

    COVARDES DA CANETA.

     

    São como aqueles que no meio de um monte de amigos brutamontes provocam todo mundo.

     

    Se estão sozinho não provocam ninguém. Não dão um pio.

     

    Atrás de uma caneta ou papel e agora da internet é fácil ser valentão e denegrir a imagem dos outros.

     

    Gostaria de ver se no cara a cara o peão junto com a sua família teria a mesma coragem de te chingar, ofender alguém ou uma religião.

     

    São covardes da caneta travestidos de jornalistas.

  • Soluções claras e inadiáveis, e não remendos

    "Talvez fosse o caso de se cogitar a criação de uma nova especialização jurídica para a abordagem de supostas ofensas tanto na mídia formal quanto na internet, algo como o “Direito de agravo e desagravo” (há de aparecer algum nome melhor do que esse...), de modo a que as nuances e sutilezas de cada caso, bem como a sua contextualização, sejam adequadamente levados em conta, assim como ocorre no Direito de família."

    A sugestão parece tentar empurrar algo que deveria ser solucionado com agilidade para debaixo do tapete do Judiciário amigo.

    Na prática isso já existe, apenas sem a especialização e o resultado é nojento.

    Deixar a critério da "inteligência" e do "livre convencimento do juíz" sem matéria prévia que defina e regule as arbitrariedades parece tentativa de adiar o problema ou deixar tudo na mesma.  

    O caminho é a aprovação rápida pelo Congresso do direito de resposta - previsto na Constituição - e a inadiável regulação da velha e carcomida imprensa brasileira, de modo a acabar do o oligopólio.

     

     

     

  • Sou mas não sou.

    Eu sou Charlie quando ataco com humor todas as grandes religiões monoteístas, que trouxeram, tal e qual todas as manifestações de poder temporal, guerra, fome e flagelo em nome de uma superstição chamada deus.

    Eu sou Charlie porque zombar das religiões é colocá-las de volta aonde nunca deveriam ter saído: a esfera privada, pois se querem fazer parte do imaginário e disputar o senso coleitvo, influenciando governos e políticas públicas, devem sofrer (ou gozar) das mesmas prerrogativas. Não dá para querer proibir abortos, regrar a moral pública e depois reivindicar a privacidade e liberdade da escolha quando são atacados por isto.

    Eu sou Charlie porque por mais violenta que seja uma charge, ela não pode ser comparada a um tiro.

     

    Eu não sou Charlie porque são hipócritas o que defendem a liberdade (de expressão), pois nunca a praticam, e pior, concorrem para sufocá-la.

    Eu não sou Charlie Netanyahu, Charlie Merkel, Charlie Obama, Charile Hollande e Charlie Le Pen.

    Eu não sou Charlie PIG.

     

    Não somos todos Charlie, e talvez sejamos mais ou menos Charlie. Eis a questão.

  • Mayjésus!!!!! Eu já vi a

    Mayjésus!!!!! Eu já vi a justiciaria dar ganho de causa para dono de mídia apenas pelo fato de blogueiros se oporem as inverdades ditas pelos donos do capital midiático. Agora, dizer que fazer piada com coisas tão intrínsicas como cultura, religião, é normal, já é demais. Fazer humor com coisas consideradas sagradas por culturas diferentes, nunca foi liberdade de expressão, mas liberdade de "ditação", de invasão da intimidade de quem crê em algo. Se sabes que gerarás violência por bobagem, por que cometer a bobagem? Por grana? Sucesso? Sarcasmo? Democracia é limite. Invadir o espaço do outro, é crime. O mundo atual, tornou-se presa do deboche, desrespeito, vulgaridade barata e burra. Humor com política é uma coisa, com religião é coisa bem diferente. A busca pela padronizão do ser humano e seu pensamento, é estúpida. Ver o circo pegar fogo, parece ser o padrão dos terroristas, principalmente, dos países ocidentais(escolas de terrorismo xenofóbico).

  • A minha posição tende a ser

    A minha posição tende a ser essa. O Charlie Hedbo não é racista nem islamofóbico, ponto final. É libertário, de esquerda, "herege" e obceno. Como toda charge para adulto tem que ser. Nesse sentido o Charb estava certo, não tratar os muçulmanos como crianças.

    No entanto, nada pode ser tomado em seu sentido fora do contexto. Não acho que as charges do Charlie que satirizavam o Islã não devessem sofrer contestação. Muitas perderam a mão.

    Há um problema grave de convivência hoje na Europa, entre imigrantes árabes, seus filhos e netos e franceses "da gema". O filho do imigrante que nasce na França não tem cidadania plena, não vota, entre outras restrições. Só na terceira geração.

    Então, acho que o autor é bem sensato. A sociedade francesa, principalmente o judiciário, deve levar todo esse "caldo de cultura" em conta, caso a caso. E não colocar tudo num pacote só da "liberdade de expressão". A França não soube fazer o debate, que o diga a proibição do véu, e o Charlie pagou o pato

  • Pergunta fácil de responder

    " O humor termina quando começa o drama e a dor humana."

    Henfil numa palestra com o Pasquim na PUC do Rio,ano 1969/70.

    Pedro Luiz

  • Que assunto .................

    Que assunto mais chato, já se esgotou !!!!

    Agora é só esperar mais controle, com a desculpa de se evitar "atos terroristas", e a tão propalada liberdade de imprensa, de expressã, de sei lá o quê vai pro brejo.

    Os inocentes uteis, ainda irão aplaudir por estarem seguros na mão do estado opressor que os livrará de todos os males!!

    Façam-me rir !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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