Um vídeo digno do bolsonarismo, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Um vídeo digno do bolsonarismo, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Repercutiu mal o vídeo publicado por Jair Bolsonaro atacando o STF, a ONU e outras instituições democráticas [aqui]. Essa repercussão, entretanto, era em grande medida desejada pelo presidente brasileiro.

Como disse aqui mesmo no GGN, Bolsonaro só existe num mundo em que a anormalidade seja a regra [aqui] e [aqui]. O vídeo é um espetáculo. Mas não um espetáculo qualquer.

Ao se comparar a um leão atacado por hienas, Bolsonaro se apresenta como vítima de uma injustiça. Entretanto, o vídeo não diz nada sobre as injustiças que ele mesmo cometeu (incentivar o aumento da violência policial, tolerar o incêndio da floresta amazônica, se recusar a recorrer o nordeste quando o vazamento de petróleo chegou às suas praias, etc…) ou que ele quer cometer [aqui].

Bolsonaro não é uma vítima da democracia ou das instituições democráticas. Na verdade ele é o destruidor de ambas e se sente prejudicado porque existem pessoas dispostas a defendê-las. Seu compromisso não é com a preservação da normalidade constitucional e sim com a construção de uma ditadura em que a vontade dele seja tratada como se fosse lei inquestionável.

O vídeo que ele postou confirma as palavras de Aristóteles:

“É uma característica de um tirano desgostar dos homens que têm altivez ou independência: ele quer ser o único a ter essas qualidades. Ele quer estar sozinho em sua glória, e julga que aquele que demonstra a mesma altivez ou independência viola sua prerrogativa, e odeia homens assim como inimigos de seu poder.” (Política, Aristóteles, editora Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 209)

E já que estamos falando de Aristóteles, nunca é demais lembrar que esse filósofo foi um dos primeiros a teorizar sobre a decadência dos regimes políticos.

“… os governos que têm em vista o interesse comum estão constituídos em conformidade com os princípios de justiça e, portanto, estruturados corretamente, mas aqueles que têm em vista apenas o interesse dos governantes são todos falhos e formas desviadas das constituições corretas, visto que são despóticos, enquanto a cidade é uma comunidade de homens livres.” (Política, Aristóteles, editora Martin Claret, São Paulo, 2018, p. 109)

Maquiavel pensou essa mesma questão de outra maneira. Mas para ele a “… alternativa real não está entre a justiça e a injustiça, mas entre uma justiça imperfeita, sujeita a erros, mas que continua a ser uma justiça pública, e a tirania, seja imposta pelas facções, seja imposta pelas potências estrangeiras. Em contrapartida, Florença, que não dispunha dessa sábia instituição romana foi regularmente sacudida por crises violentas.” (Compreender Maquiavel, Denis Collin, editora Vozes, Petrópolis, 2019, p. 166)

A decadência política, segundo Maquiavel, pode ser fruto da ausência de uma justiça imperfeita que continua a ser uma justiça pública. A questão levantada pelo vídeo postado por Jair Bolsonaro em que ele se apresenta como vítima pública das injustiças privadas feitas pelo STF, não sugere é uma evidência adicional de seu compromisso com a tirania. Ele não apenas quer substituir a democracia por uma forma decadente (em que os interesses dele sejam mais importantes do que o interesse público, como disse Aristóteles), mas também destruir a natureza pública da justiça transformando-a num apêndice de suas vontades privadas (para que o Brasil se torne uma república tão ou mais instável que Florença ao tempo de Maquiavel).

A primeira tese de Guy Debord foi enunciada da seguinte maneira:

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” (A sociedade do espetáculo, Guy Debord, editora Contraponto, Rio de Janeiro, 1997, p. 13)

Desde o julgamento do Mensalão, a democracia brasileira e os julgamentos do STF são apresentados ao público como se fossem espetáculos. A política e a justiça deveriam ser muito mais do que uma representação espetacular. Todavia, a degradação da essência de ambos se torna evidente em virtude do respeitável público encará-las como entretenimento.

A internet não democratizou os meios de produção do espetáculo, apenas aumentou a quantidade de micro-espetáculos que disputam a atenção dos cidadãos. Bolsonaro cresceu como um fenômeno espetacular marginal. Hoje ele ocupa o cargo mais importante do Poder Executivo, mas não está em condições censurar os espetáculos serão divulgados de maneira massiva ou que serão legitimados pelo Poder Judiciário. Isso explica satisfatoriamente o fato da Rede Globo e do STF serem retratados como hienas que mordem o presidente.

O vídeo divulgado por Bolsonaro pode ser interpretado como uma decadência do espetáculo político e judiciário. Mas a verdade é que é que esse fenômeno (que já vinha ocorrendo) é justamente aquilo que as imagens do vídeo pretendem produzir. A eficiência da comunicação direta entre Bolsonaro e sua base é um fato que não pode ser desprezado.

A ideologia bolsonarista se caracteriza pelo fanatismo. As pessoas retratadas no vídeo (ministros do STF, jornalistas da Rede Globo, membros do Conselho Federal da OAB) já começaram a ser ferozmente atacadas na internet. O fato do vídeo ter sido apagado por Jair Bolsonaro é irrelevante, pois a reação que ele desejava produzir já se tornou incontrolável https://twitter.com/hashtag/HienasDeToga?src=hashtag_click. Nesse sentido, chamá-lo de atrevido (como fez o decano do STF) é um eufemismo perigoso.

A direta geralmente se limita agredir as coisas. A extrema direita quase sempre se dedica a agredir, torturar e a exterminar pessoas. Os jornalistas, juízes e advogados cujas vidas o presidente está colocando em risco são a última linha de defesa da democracia. Se eles não reagirem com vigor à decadência espetacular, política e jurídica programada pelas mensagens presidenciais o resultado será uma tragédia inclusive e principalmente para aqueles retratados como hienas.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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