“A foto não é uma realidade do sírio, mas do refúgio”, dizem especialistas

Vídeo e edição: Pedro Garbellini
 

O fundador do ADUS Marcelo Haydu e o pesquisador argentino Eduardo Domenech analisam como o olhar para o imigrante se segmenta pela idade, gênero ou país de origem

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Jornal GGN – A fotografia do menino Aylan Kurdi, sírio de três anos de idade que morreu afogado, encontrado nas areias da Turquia quando tentava chegar à ilha grega de Kos, comoveu o mundo em escala massiva para a situação dos refugiados na Europa. 

Mais de 300 mil pessoas cruzaram o Mediterrâneo neste ano para chegar à Europa, três vezes mais do que no ano passado. Especialistas ouvidos pelo GGN analisaram a que ponto fotografias de uma criança foram necessárias para resultar em ação, e alertaram para o estigma da faixa etária, gênero e origem, que segregam os imigrantes em “mais” ou “menos” sujeitos de auxílio.

“Aquela imagem estava retratando uma criança, indefesa, de bruços. Agora, centenas e centenas de pessoas morrem todos os dias dessa forma. Todos os dias. Precisou ser uma criança para que houvesse essa mobilização toda”, disse Marcelo Haydu, fundador do ADUS – Instituto de Reintegração do Refugiado.

“Que outras imagens circulam? Que outras imagens impactam mais que outras? O argumento da infância aparece muitas vezes, ainda mais em fotos. Quando se tratam de deportações, por exemplo, de crianças é considerado uma aberração. Mas não quando se tratam de deportações de adultos”, refletiu o pesquisador do Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdova, na Argentina, Eduardo Domenech, especialista no tema da imigração.

De impactos ainda não calculados, a mobilização mundial provocada com as imagens resultou numa virada de decisões de governos e países que são as principais rotas de imigrantes que fogem em busca de sobrevivência. A Alemanha vivenciou uma das principais reviravoltas. 

Em plena crise, com anúncios a cada dia de refugiados mortos, a chanceler alemã Angela Merkel cobrou dos outros países da União Europeia que recebessem mais imigrantes que chegavam ao bloco econômico. No pedido, que ocorreu no dia 30 de agosto, o ministro do Interior Thomas de Maiziere disse que a Alemanha não poderia lidar com a grande quantidade de buscas por asilo a longo prazo.

Dali a três dias, 2 de setembro, a foto do menino sírio dominava as redes sociais e principais jornais do mundo. Cinco dias depois, Angela Merkel anunciava 6 bilhões de euros para administrar o grande fluxo de imigrantes e passou a afirmar que o fenômeno das migrações pode mudar positivamente a Alemanha.

No mesmo dia, 7 de setembro, a França anunciava que receberá 24 mil refugiados nos próximos dois anos. Também na segunda-feira, o ministro das Relações Exteriores da Espanha, José Manuel García-Margallo, garantiu que o país faria o esforço necessário para assumir “a cota máxima” de refugiados que lhe corresponda. Naquela semana, a Comissão Europeia calculou que o bloco receberá, ao todo, 120 mil refugiados. 

Uma iniciativa da chanceler alemã Angela Merkel, contudo, retrata a presença da seletividade quando o assunto é receber imigrantes. Em 25 de agosto, um decreto anunciava que o governo não mandará mais os sírios que buscam asilo na Alemanha de volta ao país de onde chegaram originalmente, como a Grécia ou a Itália. O decreto restringiu-se a sírios.

“É necessário questionar, repensar, reconstruir certas noções e segmentações que estão assentadas da divisão ‘estrangeiro’ e ‘nacional’, que é uma incorporação da fronteira política na vida cotidiana”, afirmou o pesquisador argentino Eduardo Domenech, apontando que essas categorias estendem-se ao preconceito da população com o outro, o “externo”.

Além de questões raciais, o gênero e a idade são também critérios visualizados de aceitação ou não daquele imigrante, afirmam. “Interessante como o mundo e a infância se incorporam nesse terreno do controle migratório, e muitas das propostas que questionam as práticas de controle migratório têm relação em como afetam as crianças e os jovens. Mas não é assim com os adultos”, lamenta Domenech.

“Tem certos aspectos do controle [migratório que são questionados quando se tratam de meninos e meninas, e não quando são para adultos. Ou, então, quando são aplicadas desigualmente a homens ou mulheres”, completa.

Marcelo Haydu trouxe o cenário do que está ocorrendo na Europa para o que também se reproduz no Brasil. “Tem muita gente que vincula a questão do refúgio a adultos e homens. ‘Vieram os africanos para cá, roubar os nossos empregos’. Não, afeta todo mundo”, diz. “É que o Brasil como um país longe dos centros de conflito, a tendência é vir mais homens, para tentar se estabelecer e depois vir filhos, esposa… Isso é natural. Mas na questão dos sírios para os países que são fronteira, a maioria dos refugiados são mulheres e crianças. Não são homens”, alerta.

“Aquela foto reflete a realidade do refugiado, não é uma realidade do sírio. Mas do refúgio”, completou.

Para Domenech, uma imagem real do imigrante representa o questionamento das divisões que produzem as fronteiras. Nessa campo, não se trata de introduzir o estrangeiro com imagens negativas ou positivas, mas de legitimar sua presença, entende o pesquisador. 

“A construção da contra-narrativa ou de outros discursos de legitimação não se refere à aplicação de uma imagem positiva contrapondo a imagem negativa, mas de questionar as divisões que produzem as fronteiras. Não com uma imagem favorável de admiração. Mas constituindo significados de igualdade entre uns e outros”, analisa o pesquisador argentino, como um desafio.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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