Respostas ao coronel, por Sergio Saraiva

Prezado coronel Lee Abe, pelo acaso dessas folhas que vagam pelo ciberespaço, acabei tomando contato com sua carta contendo as indagações que lhe assaltaram a alma advindas com o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco.

Respostas ao coronel, por Sergio Saraiva

Coronel, estou muito longe de ter as respostas para algo de tal grau de violência, duvido mesmo que alguém as tenha. Mas como sei o quanto é penoso um homem viver em dúvidas, tomo a inciativa de, com a tentativa de algumas respostas, buscar auxiliar a reduzir-lhe a angústia. Creio que o senhor faria o mesmo por mim.

Pois bem, o senhor começa sua carta aberta com a seguinte indagação: “por que o mundo inteiro respeita a polícia?”.

Coronel, independente da autoimagem que o senhor nutra de si próprio e da corporação a que pertence, julgo que involuntariamente o senhor fez uso de uma hipérbole. Uma figura de linguagem válida, mas que carrega dentro de si um exagero. O mundo está muito longe de na sua inteireza respeitar a polícia. Não que ela não o seja, mas acredito que em boa parte a polícia seja mais temida que respeitada, quando não odiada. E odiada porque temida e respeitada onde não é temida. Quanto os policiais têm de responsabilidade nisso, não sei. Mas, sem dúvida, a têm mais do que os que respeitam, temem ou odeiam a polícia.

A seguir, ainda no mesmo tema, o senhor questiona: ”por que o mundo inteiro precisa da polícia?”. 

Polícia para quem precisa de polícia.

Coronel, a existência da polícia é função direta do nosso processo civilizatório ainda deficiente e incompleto. Quando finalmente civilizarmo-nos por inteiro, a polícia deixará de ter razão de existir. Muitos já sonharam com essa sociedade e buscaram construí-la. Cristo foi um deles. Nada é fácil. Mesmo o Cristo teve problemas com a polícia de Roma e acabou sentenciado à morte.

A seguir, em determinado momento da sua carta, o senhor indaga em relação à morte de Marielle Franco: “por que tanta tentativa de transformar essa vereadora em mártir?”.

Coronel, isso já é bem mais fácil de responder: porque ela foi martirizada em razão da causa que defendia. E quem dá a vida pela causa é mártir dessa causa. O senhor como militar reverencia Tiradentes, pois não? Um mártir da nação executado em praça pública pela polícia portuguesa do Brasil colônia. Hoje, somos um país independente e o saudamos como herói da pátria.

Quanto às outras indagações:

Ela representa o povo? Sim, vereadora democraticamente eleita; legítima representante do povo. O senhor preza a democracia e respeita seus resultados, por certo.

Que povo? O povo da cidade do Rio de Janeiro que a elegeu.

Qual segmento do povo? Parte da intelectualidade carioca, mas principalmente o povo das favelas, os negros e homossexuais – por quem Marielle fez sua opção preferencial.

Do cidadão de bem? Sem dúvida. Pobres, trabalhadores honestos e pagadores dos seus impostos. Aos pobres não é dada opção de ser diferente disso. O senhor, se acompanha o noticiário, já deve saber do banditismo que assola nossas classes mais abastadas. Não busque corruptos entre os eleitores de Marielle; os corruptos não votam em pessoas como ela.

Então o senhor se sai com: “a Polícia Militar, responsável pela morte de negros e pobres na ordem de 30% no país (segundo a vereadora) é morta por quem?”.

Não sei quem mata a polícia, coronel. Isso é função da própria polícia investigar e nos dizer.

E vai além: “nós, PM, saímos pelas ruas escolhendo 30% de negros e pobres para matar (hahaha). Quando atingimos a nossa quota diária, vamos completar nossa meta matando brancos, asiáticos e tudo o mais que aparecer na nossa frente. É assim que funciona?”.

Coronel, se o senhor quis ser irônico, acabou parecendo ser grosseiro. Sinto em dizê-lo.

Mas, existem estatísticas; e segundo o Atlas da Violência do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no país. Os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças; já descontado o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.

Quantas dessas mortes violentas se dão em confrontos com a polícia e em que circunstâncias? Não sei. Mas o senhor está do lado dos que também apertam gatilhos – eu não. Deve saber como a coisa funciona.

E o senhor prossegue: “e quando morrermos em combate, tentando salvar uma vida inocente que clama pela nossa presença, vamos aguardar pacientemente os políticos, a imprensa, autoridades que estão fazendo todo esse alarde pela morte dessa “pessoa” intitulada vereadora, promotora dos direitos humanos, mãe, homossexual (como ela mesma se apresenta) fazerem também o mesmo alarde exigindo respostas rápidas e firmes das autoridades?”. 

Que parágrafo longo, coronel. Quantos assuntos tratados no mesmo texto. Técnicas de redação não são seu forte, vê-se. Mas vamos lá.

Coronel, vou considerar que o senhor é ignorante quanto aos significados que possam ter o uso de aspas na linguagem escrita. Porque considerar que o senhor os conheça e mesmo assim referia-se à uma pessoa como sendo “pessoa” poderia leva-lo a responder por injúria. Não muito distante da injúria racial, por razões óbvias.

Coronel, Marielle não era “intitulada” vereadora; era vereadora diplomada pela Justiça Eleitoral.

Era mãe. Foi mãe muito jovem – aos 19 anos – pobre, solteira, favelada e soube como buscar no trabalho a forma de sustentar e educar a si mesma – socióloga com mestrado em administração pública – e sustentar e educar a filha que este ano busca a universidade. Mãe tanto quanto a sua mãe que, creio eu, não fez menos pelo senhor.

Quanto à homossexualidade – coronel, eu e senhor somos heterossexuais e jamais fizemos qualquer coisa para sê-lo. Não vamos, na idade que temos, considerar isso qualquer virtude. Somos o que somos. E ela também era o que era.

Tratemos, pois, dos policiais que morrem em ação. Ainda que, pelo menos aqui em São Paulo, a polícia muito mais mate em ação do que morra. Todos lamentamos tais mortesUma vez me ensinaram que o certo é quando, no final do dia, o bandido vai para a cadeia e a vítima e o policial voltam para suas casas. Quando qualquer um dos três morre, algo de muito errado aconteceu. Quem me ensinou isso era policial. Imagino que o senhor concorde com o colega.

Já quanto à sua declaração: “o mais incrível é declararem em coro que os matadores “sabiam atirar”, insinuando serem policiais”, ou o senhor é muito ruim em analisar indícios – o que deporia contra a sua competência como policial – ou parece estar querendo que acreditemos que o senhor é bem mais ingênuo do que realmente seja.

Por fim, o senhor fecha sua carta com: nós, policiais, temos uma missão muito maior do que essa mesquinharia. Somos muito mais do que “isso”. Somos a polícia!”.

Desculpe-me a franqueza, coronel, mas, na minha opinião, mesquinharia é só o que transpira desta sua carta e, fosse eu o seu comandante, o senhor seria punido pelo desserviço que com ela presta à corporação.

 

PS: quando a razão se torna irracional, meu coração busca abrigo na Oficina de Concertos Gerais e Poesia.

Redação

Redação

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  • Muito bom!

    Generoso Sérgio, sem alterar nenhuma vírgula dessa sua carta, quem sabe não seria bacana também avisar ao coronel que não é porque, na medida em que formos avançando no processo civilizatório a polícia não será mais necessária, que a polícia precisa trabalhar para "segurar" a sociedade na barbárie, e que os que hoje são policiais, na medida em que formos avançando em humanidade, não ficarão desempregados, simplesmente não precisarão mais ser policiais? Encontrarão outras profissões, quem sabe até em área menos violenta e arriscada?

    E àqueles poucos que ainda assim, por obra do destino - compleição inata ou aculturamento - gostarem de violência e risco, poderão realizar suas potencialidades, por exemplo, pilotando britadeiras sem usarem EPI. Ou pulando de paraquedas sem paraquedas, coisas assim, que tal?

  • Independente da necessidade

    Independente da necessidade social etc, um sujeito colocar uma roupa para todo o dia trabalhar e sair dando tiros, batendo, gritando com outras pessoas, não parece ter boa saúde mental.

    Sinceramente, eu não suportaria um dia.

  • Paraná, o estado onde se cumprem as lei! #SQN

    Interessante que uma resposta fascita e estúpida à reação popular pela execução da moça, tenha partido da PM do Paraná.

    Tinha muita convicção a respeito do estado de degradação moral que existe hoje nesse estado, onde as pessoas em grande número, se acreditam paladinos da justiça em uma missão divina, santa, de ensinar para os outros como se faz. A fala grotesca desse sujeito só evidencia isso mais e mais. É vergonhoso.

    O Paraná é uma vergonha. Os paranaenses estão doentes.

  • parabéns

    Sergio Saraiva,

    Parabéns.

    Uma verdadeira aula de civilidade para um policial corporativista até a medula.

    Bem faria a Polícia Militar, se orientasse os seus a evitarem manifestações deste tipo neste momento, caso contrário poderão surgir autênticas aberrações, todas elas comentadas possivelmente sem maldade, mas com a mais absoluta convicção.

    Quanto ao coronel indignado, bem que ele poderia ganhar uma viagem a, por exemplo, Cingapura ou Tóquio, quando teria a oportunidade de compreender que é possível  a uma sociedade viver sem policiamento ostensivo, a oportunidade de conhecer locais que nem sonham em ter milícias espalhadas por todos os lados, tudo em perfeita "calma de araque", a oportunidade de .................

     

  • Este é o novo país inaugurado
    Este é o novo país inaugurado pelo Moro.
    Cada autoridade fala que quer e quando quer.

    De PM a Desbargador.

  • Pois é, e o coronel com essa

    Pois é, e o coronel com essa reação vestiu a carapuça. Se tivesse reclamado de pré-julgamento, de que já estão botando o crime na conta da polícia antes de começar a investigação, teria que dar razão a ele. 

    Mas ao investir contra a vítima dessa forma raivosa, se trai e parece simplesmente procurar justificar seu assassinato. Que no fundo sabe que foi cometido por colegas, coronel?

  • É mais fácil desrespeitar a quem amamos do que a quem tememos

    "Os homens têm menos escrúpulos em ofender quem se faz amar do que quem se faz temer, pois o amor é mantido por vínculos de gratidão que se rompem quando deixam de ser necessários, já que os homens são egoístas; mas o temor é mantido pelo medo do castigo, que nunca falha". - Machiavel

  • Só uma pergunta entre as
    Só uma pergunta entre as dezenas possíveis já que o coronel aparentemente não entrou no mérito de questionar o porquê da existência de tanta marginalidade,se a violência extra a serviço da sociedade escravocrata vai acabar com a violência, etc.,etc.,só uma pergunta: Existe algum país civilizado em que a polícia seja militar?

    • Porque você não pergunta isso
      Porque você não pergunta isso para o deputado que elegeu? A polícia é militar porque a constituicso assim determina e nos 3 governos do PT ninguém fez nada para emenda-la.
      A polícia é militar não porque gosta de ser militar, mas porque a classe política prefere que seja assim, é pessoas ignorantes como você não se dão a menor conta disso.
      Aprenda a votar e a exigir uma polícia não militar, o que vai ser melhor não só para a sociedade, mas para os próprios policiais que, na condição de militares têm menos direitos que a maioria dos trabalhadores, como direito de greve e habeas corpus irrestrito contra prisão, entre outros.
      Não culpe a polícia que você não conhece, ou finge não conhecer.

  • Boatos da direita pra desqualificar...

    Já vi isso antes!

    As falas que querem desligitima-lá como líder são fake news e gostaria de ver se a grande midia as desmentirá.

    A desembargadora foi outra propagadora de fake news que vou ver se a câmara dos vereadores ou o PSOL vão processa-lá p/ provar que o CV tinha acordo com ela.

    É no whats que fingem apoiar notícias verdadeiras e em “off” p/ repassar boato p/ difamar os opositores. Quase tenho dó dos milhares de Marcos Villas cheios de ódio da direita, mas por mal esperarem enterrá-la, borá “cair dentro” p/ desmascara-los.

    *Que vergonha 1 coronel da PM que não sabe quem mata seus policiais

    • Gênese das fake-news

      "Procurada pela coluna, a desembargadora afirmou que nunca tinha ouvido falar de Marielle Franco até seu assassinato e que se baseou informações que leu "no texto de uma amiga"."

      Coisa feia, desembargadora... Coisa feia!

       

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