Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Fila de Sem Leitos no RN é inconstitucional e deve ser resolvida com urgência, por Ion de Andrade

A solução do problema exige uma estratégia de financiamento por parte do Poder Público como um todo e se converteu numa questão humanitária e de direitos humanos

Diário do Nordeste

A solução do problema exige uma estratégia de financiamento por parte do Poder Público como um todo e se converteu numa questão humanitária e de direitos humanos

Fila de Sem Leitos no RN é inconstitucional e deve ser resolvida com urgência

por Ion de Andrade

O problema dos pacientes “Sem Leitos” que aguardam um internamento em UTI numa fila que não retrocede e que vem flutuando ao longo dos últimos quinze dias em torno de 55 pacientes por dia é, dentre os problemas graves da pandemia no Rio Grande do Norte, o mais grave.

A fila, em lugar de ser temporária foi se consolidando como a periferia dos que tem acesso à assistência, à imagem do que é o Brasil em todas as áreas, porém, por ditame constitucional, a Saúde é um Direito de Todos, um dever do Estado e não se pode, sob nenhuma hipótese, abrir mão desse direito. Relativizar isso, para além da perda de vidas, poderá trazer prejuízos incalculáveis à (pouca e insuficiente) civilidade que a duras penas construímos até aqui.

O presente artigo, reconhece o imenso esforço da Secretaria de Saúde Pública do RN em abrir centenas de leitos de UTI, o que salvou milhares de vidas fato que merece relevo e que não pode deixar de ser citado e considera esse esforço extremamente meritório. O texto reconhece, portanto, que a atual insuficiência de recursos financeiros da Secretaria Estadual de Saúde (SESAP) é que é a causa maior de que não possa tomar as iniciativas necessárias a assegurar as vagas de UTI que faltam, pois se pudesse, seu histórico de compromisso nessa pandemia demonstra que o faria.

O presente texto não é, portanto, condenatório da SESAP, muito ao contrário aliás. Dirige-se ao conjunto do Poder Público do RN, Executivo, Legislativo, Judiciário e municipalidades, para que definam uma estratégia clara de enfrentamento do problema como manda a Constituição.

São os pontos que seguem.

  1. Conforme demonstrado pelo Sr. Secretário Estadual de Saúde, dr. Cipriano Maia de Vasconcelos em reunião com a Sociedade Civil ocorrida no último dia 12 de abril, a SESAP não tem mais recursos para o enfrentamento da Covid-19, se fizer novos gastos para contratar leitos e internar esses doentes, poderá não conseguir pagar o que está em funcionamento. Esse é um problema central que materialmente impede a Secretaria de tomar iniciativas capazes de resolver esse problema.
  2. Isso não isenta o Poder Público, sentido amplo, de cumprir o ditame constitucional. A Constituição de 1988 é anterior ao SUS e a Saúde é ali considerada como um direito de todos e um dever do Estado, o que compromete o conjunto do Estado brasileiro;
  3. Os custos envolvidos, considerando o preço/paciente/dia do contrato entre a SESAP e Liga Norte-rio-grandense contra o Câncer (LIGA), que à época dos primeiros meses da pandemia cobria todas as despesas do internamento do paciente Covid, (exceto as da hemodiálise), usando porém leitos e equipamentos pertencentes ao estado do Rio Grande do Norte, se situaram em de R$3.200,00. Esse contrato é um importante parâmetro de cálculo no que se refere a estimar, para a presente reflexão, quanto o Poder Público do RN gastaria se tivesse que internar esses pacientes da fila em leitos privados, como ocorreu no contrato com a LIGA. Se acrescentarmos 25% desse valor apenas para irmos definindo uma grandeza, pela inclusão do aluguel desta vez também de leitos e equipamentos, (hoje a SESAP não conta com essa disponibilidade), chegaremos a um custo/paciente/dia hipotético de R$4.000,00 por paciente por dia (uma projeção para podermos estimar, nesse exercício de viabilidade de um custo aproximado).
  4. Internar 60 pessoas por um mês, imaginando que será o tempo suficiente para a rede SUS ser ampliada e para termos atingido o topo e iniciado a descida da curva da epidemia, representaria, portanto, algo como R$240.000,00 por dia e R$7.200.000,00 num mês, o que pode obviamente variar para mais, mas a grandeza está estimada.
  5. O orçamento do RN (que financia o Executivo, o Legislativo e o Judiciário) corresponde a 13,4 bilhões de reais por ano. Um ano tendo 365 dias, tem 8.760 horas o que resulta numa arrecadação de R$1.529.680,00 por hora (ou, simplificando, um milhão e meio de reais por hora). Os custos de R$7.200.000,00 correspondem, portanto a cinco horas de arrecadação do estado do Rio Grande do Norte, destinadas ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário. Isso é uma simplificação matemática pois todos sabemos que os orçamentos são menores do que as necessidades. A obrigação do atendimento à ordem constitucional recai não somente sobre o Executivo, mas também sobre o Legislativo e o Judiciário, além do governo federal, que tem falhado e muito nos repasses referentes à Covid e sobre os municípios de onde se originam os pacientes em fila.
  6. Se a Sesap tiver dificuldades de abrir os leitos previstos para o Hospital João Machado, ou se os abrir e for constatado que não são suficientes para acomodar a todos os pacientes em fila, temos que responsabilizar o conjunto do Poder Público para assegurar o cumprimento da Constituição no que toca à Saúde. Os Poderes devem se entender para aumentar as disponibilidades financeiras para o SUS do RN via Sesap.
  7. Estamos portanto falando de uma grandeza que vai girar em torno de 7,2 milhões de reais, podendo eventualmente ser algo maior, na feitura do cálculo definitivo. Nesse esforço para financiar a obrigação, o Legislativo certamente tem como colaborar, o Judiciário tem reservas substanciais decorrentes de multas e poderia doá-las para que o direito à saúde e à vida possam ser respeitados. E o Executivo, embora esteja fazendo muito, deve considerar seriamente a hipótese de ter que fazer mais. Os municípios também devem cobrir parte dessas despesas, pois nessa fila há gente de todo o RN. Finalmente o governo federal deve ser responsabilizado pelo que lhe compete de repassar os recursos para o enfrentamento da pandemia.

Estamos falando de um montante que é irrisório em relação aos orçamentos dos Poderes no nosso estado, mas estamos provavelmente diante de um problema nacional.

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) deve, portanto, sentir-se parte desse esforço e deve esforçar-se para pressionar o governo federal a cumprir a sua parte atualizando os repasses.

É hora do conjunto dos Poderes Constituídos respeitarem a Constituição e a vida das pessoas.

Ninguém pode ficar para trás!

Nosso agradecimento ao dr. Haroldo Vale que colaborou com o presente artigo

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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