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Algum gesto possível, por Maíra Vasconcelos

Meu pensamento ultrapassou todos os limites da liberdade, por isso sou capaz de criar. Enterrada nesta cadeira, com uma vida que talvez saiba levar. Ah, tudo seria mais confortável se eu pudesse guiar e estabelecer o querer de uma vida. De uma vida, apenas. Porque a vida que eu certamente sabia levar, essa vida ficou para trás. Agora faço algum gesto possível, apenas. Como o gesto de escrever. Adocicando meus sentidos, todos eles fartos de expressão desmedida, mas que agora perpassam afinados e vivos pela palavra. Virei um troço em meio a palavras incertas e mandonas. Uma mulher-animal que mudou de pretensões para uma vida quase regrada, uma vida quase regrada. Agora que minhas necessidades se resumem à quietação numa cadeira a escrever. Faço um gesto possível, como o gesto de escrever alguma história. Mas se isso aqui é uma história, talvez nunca hei de saber. A única história que seria a minha eu nunca mais irei conhecê-la e traçá-la e ordená-la ao caos que por fim me coubesse. Sim. Sendo esta que não pude, insuportável ao corpo que padecia por seus quereres. Então sinto viver mais, assim, quando se mata um modo de estar no mundo para renascer em outra. Matar e renascer em nós mesmos, isso que apenas o espelho concebe.

Assim, cheguei até aqui. Quando respirar foi a primeira lição, muito antes de flores e passos-um-atrás-do-outro, muito antes de aceitar as concretudes de uma frouxa razão e de uma transitória consciência, enfim, tão dosadas. Se não aprecio o exaltar da razão e da consciência, mas aprendo a querê-las como se um passarinho adoidado entendesse de ser humano. Depois veio a quietação do corpo na cadeira. Este corpo absurdamente concentrado: e assim mais um gesto possível. Logo, as palavras borbulham e exigem sequência. E o que escrevo é impensado, apenas. Isso que escrevo, que também vem dos livros que apanho curiosamente, e dos livros presente daqueles que me amam calado. E, assim, recolho também gestos possíveis: do outro de um amor silenciado. E, assim, também entrego outros gestos possíveis: do livro que abandonei no colo de um homem para que ele sempre cuidasse de mim, sempre.

Assim, cheguei até aqui. Quando às vezes tudo se resume ao cansaço de viver o que vem da palavra. Essa palavra que é impressa cada dia porque toda voz há de pertencer a quem estiver no lugar. Em algum lugar a escutar, a colher os vestígios que se fazem saber entender. Entendido, respondo a voz que se quer expandir. Expando, obedeço a voz que se quer ecoar. Não sei até quando. Amanhã, talvez. E amanhã é uma palavra inconcebível e completa de indefinições. Amanhã é uma palavra impossível.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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  • UAU!!!

    "Assim, cheguei até aqui. Quando respirar foi a primeira lição, muito antes de flores e passos-um-atrás-do-outro, muito antes de aceitar as concretudes de uma frouxa razão e de uma transitória consciência, enfim, tão dosadas":

    Mentira sua ou modestia?  Sua primeira licao foi o bater do seu coracao e ele bate docemente!

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