Categories: Crônica

Alma belorizontina

Lembro-me de uma crônica de Machado de Assis, preocupado com a modernização (inevitável) da capital carioca e pedia, quase como um suplício, que poupassem a Rua do Ouvidor, aquele reduto de uma certa alma carioca.

Por que essa lembrança me vem tão forte, neste momento? Algumas de minhas lembranças quando criança, são coisas tenras que marcaram aquele período. Um de meus programas semanais era comer a pipoca com queijo da Praça do Papa, a pipoca doce do centro, o amendoim caramelizado que, invariavelmente, acompanhava o carrinho do pipoqueiro. Eles (os pipoqueiros) estavam em todos os lugares: portas de teatro, escolas e até (acreditem) no maior shopping da cidade. Apresentavam a nós, crianças daquela época, um mundo de escolhas que fingíamos difíceis a despeito de deliciosas: “quer o saquinho meio a meio?” ;”só salgada?” ou “só doce?”. Com seus chamativos: “olha a pipoca quentinha” que me fazem crer, até hoje, que poucas coisas são tão charmosas quanto um carrinho de pipoca e sua luz trêmula.

Por que raios estou falando de pipocas? Bem, moro em Belo Horizonte há 30 anos e esta sempre foi uma cidade da boêmia, das mesas que tomavam conta das calçadas, dos grupos de jovens com seus violões em punho, do futebol na praça, a feira de artesanato aos domingos. Pouco a pouco, vejo medidas políticas tirarem as mesas das calçadas, os violões dos jovens, a feira dos artesães, o mercado dos trabalhadores, o duelo dos MC´s e, agora, resolveram se meter com os pipoqueiros?

Certamente que vi também a cidade crescendo, o trânsito se complicando e uma inevitável modernização que me fez lembrar de Machado e a sua Rua do Ouvidor. As cidades têm alma, já nos advertia Proust. E temo que a alma belorizontina vá se esvaindo junto com as mesas, as bolas, os violões e os pipoqueiros. É certo que venho de uma geração que comia “cigarrinhos de chocolate” e, portanto, se preocupa menos com o politicamente correto que, erroneamente (as despeito de preciso muitas vezes), parece servir de desculpa para qualquer tipo de proibição.

Curiosamente, escrevo este texto (ele foi digitalizado depois) à caneta e a luz de velas pois meu bairro está há 12 horas sem luz. Da atendente da companhia mineira de energia, quando questionei se não havia mais ninguém que pudesse me dar uma previsão de volta da energia, escutei que poderia ligar de novo e ouvir a mesma resposta de outro atendente!!!!! E me pergunto, novamente, por que estaríamos, nós, falando de pipocas mesmo?

Luis Nassif

Luis Nassif

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