Os médicos não pedem passagem, por Ronaldo Correia de Brito

da Revista Continente

Os médicos não pedem passagem

por Ronaldo Correia de Brito

Nunca escrevo contra os médicos, porque há exemplos de grandeza e desprendimento entre eles. O patriarca Abraão discutiu com Deus sobre o destino de Sodoma. Barganhou para que a cidade não fosse destruída. Conseguiria salvá-la desde que houvesse dez justos entre os seus habitantes. Abrahão não achou-os e Sodoma ardeu em chamas.

Há mais de dez médicos justos no Brasil.

Quando entrei para o internato de clínica médica, num hospital do Recife, estranhava o index criado pelos colegas de esquerda, proibindo que alguns profissionais fossem chamados a dar parecer. “São de direita”, falavam torcendo o rosto. Eu me rebelava e trazia-os para avaliar os pacientes. Desconheço os motivos, mas os proscritos eram quase sempre dedicados e sérios, exemplos para minha formação.

O maniqueísmo que agora retorna com mais virulência, me parecia bobagem. Um diretor do hospital público, onde assumi o primeiro emprego, era um tenente reformado da aeronáutica, homem ético, excelente profissional. Fomos amigos até sua morte. Mas não faltava quem me prevenisse: “Cuidado com o que você fala na presença dele, pense no risco de ser preso. Nunca esqueça que se trata de um milico”.

Em plena ditadura militar, quando vários médicos colaboravam em sessões de tortura de presos, também havia militares honestos e bons trabalhando nos hospitais. Mesmo sendo esquerdista e patrulhado, eu percebia o bem e o mal à direita e à esquerda. Nesse julgamento, considerava o homem político definido por Aristóteles, o ser que necessita de coisas e dos outros, é carente e imperfeito, busca a comunidade para alcançar a completude, precisa exercer a tolerância com as ideias diferentes das suas, sejam conservadoras ou avançadas.

Nas décadas de 1970, 80 e 90, os sindicatos, os conselhos regionais e as associações médicas brasileiras foram ocupadas por profissionais alinhados com o pensamento de esquerda, atuantes nas políticas públicas de saúde, defensores do SUS, num movimento conhecido por Reme – Renovação Médica. Travou-se uma luta pela reforma do ensino, melhoria dos hospitais e reforma psiquiátrica.

Não identifico em que momento aconteceu a guinada para a extrema direita, o alinhamento de sindicatos, conselhos, sociedades de medicina e médicos com o antipetismo, o antilulismo, o golpe que depôs a presidente Dilma Rousseff, e, ainda mais grave e radical, o bolsonarismo. Foi como fogo num rastilho de pólvora, tamanha a rapidez com que eles passaram a ver em Bolsonaro sua imagem e semelhança. Na escolha entre civilização e barbárie, os médicos habitualmente identificados ao humanismo, à cultura e à ética, preferiram ficar com os 57 milhões de brasileiros que elegeram a estupidez, a cretinice e a violência.

Órgãos representativos de classe assumiram a propaganda de Jair Bolsonaro e do juiz Sérgio Moro, as fake news e a postura de que foram vitimados pelos governos do PT. Estudantes, residentes, médicos jovens e veteranos passaram a agredir qualquer pensamento político à esquerda, num radicalismo e belicosidade que comprometia o atendimento aos pacientes. Trabalhar em hospitais e ambulatórios públicos, geralmente precários e insalubres, tornou-se um sofrimento maior.

Não se tratava da fala de pessoas miseráveis e analfabetas, mas da elite médica brasileira.

Em 2018, não suportando o convívio e o clima beligerante, as precárias condições do hospital onde trabalhava há 40 anos, me aposentei, mesmo achando que alcançara a melhor qualificação profissional. O ato de fugir, mais que covardia, significou sobrevivência.

Nos dois anos do segundo mandato de Dilma Rousseff, em que ela não conseguiu governar, cada desacerto, mesmo em serviços administrados pelos municípios ou estados, era atribuído à presidente e culminava com um “Fora Dilma” ou em xingamentos mais grosseiros. Nos dois anos de Michel Temer, a Saúde retornou ao velho modelo de indigência. Houve desqualificação e sucateamento do SUS, o que culminaria na proposta de privatização da assistência médica e extinção do Sistema Único de Saúde pelo governo Bolsonaro.

A eleição do Mito (leia-se o significado no Houaiss: afirmação fantasiosa, inverídica, que é disseminada com fins de dominação, difamatórios, propagandísticos, como guerra psicológica ou ideológica; a exemplo do comunista que come criancinha ou da inferioridade mental dos negros) foi comemorada como a travessia do Mar Vermelho (o duplo sentido é intencional), por médicos e entidades de classe. A adesão ao bolsonarismo pela classe tinha sido alta, talvez beirasse os 90 por cento. O assédio aos não bolsonaristas tornou-se humilhante e agressivo.

Transcorreu o desastroso primeiro ano de governo do Capitão e eu me perguntava se os médicos se manteriam em suas trincheiras, armados até os dentes na cruzada anticomunista, contra Lula e o Partido dos Trabalhadores.

Mantiveram-se.

Veio a pandemia e com ela o obscurantismo do Presidente e seus seguidores no enfrentamento da Covid-19. Nos hospitais públicos desaparelhados faltava o essencial, luvas, máscaras, medicamentos, seringas, álcool e até água para lavar as mãos. As emergências com pacientes em cadeiras, macas de ferro ou papelões, largados pelos corredores, ofereciam maior risco de contágio aos médicos e profissionais de saúde aplaudidos como heróis.

Levados ao extremo do desespero, mesmo assim eles não se mobilizaram com seus representantes, denunciando o homicídio oficial de milhares de brasileiros, praticado pelo presidente, ministros, governadores e prefeitos. A classe tão articulada no “Fora Dilma” e na eleição do “Mito”, preferiu calar e sacrificar-se, assumindo o papel do herói vitimado.

A nota divulgada pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, após a morte por Covid-19 do cirurgião de cabeça e pescoço Ricardo Cruz, de apenas 66 anos, é um caso raro e isolado. Foi necessário que morresse um cirurgião brilhante, além de tantos outros profissionais da saúde vitimados pela pandemia, para que os médicos alertassem sobre a nossa população cansada, sem rumo e sem liderança.

“Ricardo Cruz morreu, apesar de ser submetido a um tratamento caro, sofisticado e disponível a uma minoria de brasileiros, aí incluídos os usuários de planos de saúde de alto custo. Isto demonstra a miopia, a desumanidade, a negligência e a criminosa irresponsabilidade histórica de políticos e mandatários…”, diz a nota, que não cita o nome de Jair Bolsonaro.

Nada leva a crer que depois de 10 meses na luta contra a Covid-19, com o saldo de quase 200 mil mortos, os médicos estressados, adoecidos, mal pagos e enganados perderam a fé no Mito que elegeram. Aferrados ao individualismo heroico, como um Parsifal, eles não encaminham protestos, manifestações nem atos civis contra a política homicida do governo. Alguns radicais ainda sacam bandeiras ou usam camisas verde e amarela da seleção, nos raros eventos onde comparecem.

Sofremos dos males pandêmicos e de uma cegueira mais grave, que me parece incurável.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

ENTREMEZ / Ronaldo Correia de Brito

Coluna mensal do autor de ‘Baile do Menino Deus’ (teatro), ‘Faca’ (contos), ‘Galileia’ (romance, Prêmio São Paulo de Literatura), ‘Estive lá fora’ (romance) e ‘O amor das sombras’ (contos). Ele faz desse espaço um lugar para atualizar sua veia de cronista.

Redação

Redação

View Comments

  • Bom dia
    Parabéns pelo artigo que de forma sucinta descreve o comportamento da categoria ao longo de um período histórico de nosso país.
    Também sou médico e sei que a maioria esmagadora destes profissionais são originários da classe média e aderiram ferozmente ao bolsonarismo.
    O comportamento adotado neste momento é de fazer que nada de errado está acontecendo, não interessa se o ministro da saúde é militar desqualificado, não interessa o número de mortos, muito menos sucateamento dos serviços públicos, nem sequer os riscos a que todos nós estamos submetidos; não, nada disso interessa, o apoio ao genocida é irrestrito, silencioso e covarde.

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