Crônica

Os vinte e cinco, por Maíra Vasconcelos

Os vinte e cinco

por Maíra Vasconcelos

Tem-me faltado audácia para escrever essas crônicas. Isso de quando nos sentimos vencidos pela escrita antes mesmo de começar. Mas hoje aqueles vinte e cinco fazem com que eu tente um novo texto. Ainda que à medida que escreva, perceba aquela velha e conhecida inutilidade de cada palavra diante do absurdo. Para cada corpo, uma palavra que servirá de nada. Para cada palavra, um corpo que é uma imensidão e muito maior do que cada palavra. Porque simplesmente jogar atrás das grades de ferro já não é suficiente. Um, dois, quatorze, onze, dezoito, vinte e um, vinte e três, vinte e cinco corpos estirados no chão de uma casa. E qualquer um que preze um pouco pela vida, dirá, isso é muito. Vinte e cinco é muito.

Depois de que “Mineirinho” foi escrito por Clarice Lispector, parece que todos os textos que falem pela vida podem não passar de uma repetição. Um corpo morto em Varginha seria questionável, vinte e cinco corpos é como perder a fala diante de. Um corpo no chão é vontade de matar, quinze corpos é querer ver morrer. Vinte e cinco é o ódio pelo outro.

Talvez fossem vinte e cinco “doentes do crime”, como disse Clarice. Mineirinho foi um doente do crime que morreu com treze tiros quando um só bastava. Não estive no local, mas vinte e cinco corpos sem vida ocupam muito espaço. Só não ocupam mais espaço do que corpos com vida. Porque a vida é ampla e esparramada. E aqueles vinte e cinco já não podiam se ampliar, ou se salvar, foram atirados ao ato final de paralisia de todos os seus movimentos. Vinte e cinco criminosos que agora ocupam o devido lugar, o lugar-nenhum. Eles não mereciam as grades da prisão, eles não mereciam nem sequer isso. Eles são vinte e cinco medalhas institucionais.

Acho que as crônicas podem ocupar um lugar de registro inusual nos jornais quando muitas notícias, às vezes, não passam de publicidade. Por isso, quinze, dezesseis, dezenove, vinte, vinte e dois corpos são, talvez, melhor contabilizados aqui. Porque é preciso contar até vinte e cinco. E cada número que falo parece ser outra coisa. Não mede o absurdo. Talvez por isso se escreva sobre os horrores. Não necessariamente para retratar o horror, mas para contar juntos e perceber que vinte e cinco é muito, que talvez passamos da conta. Além do mais, lia os jornais e constatava o abandono da palavra massacre subistituída pela palavra operação, essas operações tidas como heróicas e precisas. Imprecisos são os números dessa crônica.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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  • essa matança foi queima de arquivo, ... não podiam prender sem se comprometer, ... então, passaram a réqua....

  • Life is cheap in the Orient

    “O Oriental não dá à vida o mesmo valor que o Ocidental dá. A vida é abundante, a vida é barata, no Oriente. E, é claro, esta é a filosofia do Oriente. Ela assim se expressa - a vida não é importante.”

    General Westmoreland, depoimento para “Hearts and Minds”, de Peter Davis, 1974, que revi, pela centésima vez, neste fim de semana.
    E dou de cara, segunda pela manhã, com esta bela crônica.
    Marginais, certamente, não dão muito valor à vida - mas só a dos outros. À própria, certamente, dão, e isso é atestado pelo gosto por frequentar lugares caros, usar roupas e jóias caras, os carrões e as viagens. Para obter tudo isso, não apenas traficam drogas e matam inimigos regularmente, mas deixam rastros de destruição por onde passam.
    Lamentavelmente, a descrição acima serve tanto aos marginais, quanto aos poderosos que atuam, supostamente, do outro lado, ou seja, sob o império da Lei. Banqueiros, megaempresários, etc. Muda a natureza do crime, mancha-se menos de sangue - ou sequer entra-se em contato com ele - mas o crime é cometido da mesma forma. Balzac bem o sabia.
    E não estou falando de policiais - esses são, igualmente, bucha de canhão da sociedade afluente, escalados para matar gente que, quase sempre, tem a mesma origem social, passaram pelas mesmas agruras e privações na infância e juventude, até assumir seus postos no nosso belo quadro social, enquanto os outros pegam o atalho do crime. Psicopatas e assassinos não são prerrogativa desta ou daquela extração social - são apanágio da humanidade como um todo, bem como os bons e mansos.
    Mas o crime de que falo é limpo, asséptico, sai nas colunas sociais (ainda existe isso? melhor dizer, ‘nas redes sociais’), é admirado e exaltado, e muitos almejam ser como os que o cometem. O crime gaba-se de si mesmo, se exibe, em vídeos e áudios, sejam marginais posando com mulheres seminuas e portando um arsenal, ou executando inimigos a sangue-frio, seja um banqueiro numa reunião ‘inter pares’, exalando gabolice e fazendo piada com o contraste entre o seu setor - que vai muito bem, obrigado - e o país: “em nenhum momento eu disse que o Brasil está dando certo.” Até porque é preciso que o país se afunde para que o setor dele dê certo.
    E, no meio dos bandidos sujos de sangue, e dos bandidos que usam perfume francês e tem whisky 12 anos no copo, está o trabalhador: explorado por uns, achacado por outros, e daí? Quem dá a mínima? Ainda não estamos mortos, como o Mineirinho, ou os 25 de Varginha, mas, certamente, o que nos aguarda não é o perfume nem o whisky, mas a bala ou a fome.
    É, General Westmoreland, a vida no Ocidente tem valor.
    Antes, comercial, hoje, financeiro.
    E os novos senhores da guerra não usam armas nem tanques.
    Invadem nossa vida com ilusões, sob a forma de consumo, que se transformam em dívidas.
    No fim das contas, apenas mais uma forma de morrer: encalacrado.
    Mas não se preocupem, meus amigos, com os horrores que lhes digo: isso é somente um desabafo.

  • Chico,
    Concordo. Essa foi a minha primeira dedução. Após, tem também a disputa por território e ao que tudo indica os “meninos” de “Beraba” e “Berlândia” estavam implementando uns “overlays” e os “velhos” mostraram que ainda têem balas na agulha, literalmente. E oficial, balas com origem/destino já com nomes e CEP’s pagas pelo contribuinte, e “dedos moles” com patentes.
    Por último, dado que tem uma das corporações que participaram da “contenda” e são tão “interessados” que tem o objeto do interesse no nome e há uma grande possibilidade que os resultados estivessem subindo o Paranahyba ao invés de descendo o Grande e isso mostrou-se inconveniente.
    Uma pergunta em um cenário letal (?) Estatisticamente, qual a probalidade que só balas de uma lado acertassem os alvos e do outro lado só os estrábicos com disfunção mental mirando para o ar e para o chão?

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