Crônica

Periferias e carências, por Daniel Gorte-Dalmoro

Periferias e carências

por Daniel Gorte-Dalmoro

São Miguel Paulista, periferia de São Paulo. Para além de todo um quê muito específico de periferia, o vento frio que corta o céu azul de inverno me traz à memória a periferia que eu muito frequentei quando criança: a casa de meus avós, em Ponta Grossa. Passando em revista essas lembranças, noto que há toque da ingenuidade que não me permite enxergar como o bairro de fato era: não consigo ver ali uma periferia pobre, apesar de saber que era e ainda é. Talvez as boas recordações dos meus avós, talvez pelas casas terem quintais, não serem uma colada na outra, talvez efeito da comparação com a periferia ainda mais pobre que às vezes passava de carro com meus pais, em Pato Branco – o “bairro” do Rasga Diabo, uma pirambeira com casas de madeira sem pintar, algumas de lona, onde moravam pessoas de carne e osso (muitos anos depois me veio o estranhamento desses passeios e questionei à minha mãe o porquê deles: me disse que era para eu e meu irmão termos alguma noção do mundo, que não se resumia à nossa agradável vida de classe média moradora do centro). Em São Miguel, como costumo ver não só nas periferias de cidades grandes e médias de São Paulo, as casas são grudadas uma nas outras, em terrenos estreitos e sem recuo; algumas só possuem o reboco, outras nem isso; algumas pintura recente, outras pinturas descascando. No meu trabalho, faço o que me cabe, pergunto questões práticas, faço algumas orientações. O novo normal já está instituído: como eu temia, é o mesmo do velho normal, só que com máscara no rosto e nas prateleiras produtos mais caros – mais pobreza, mais escassez, mais carências. Eu observo o material no chão, os restos de uma sociedade que há muito se especializou em produzir lixo – em vários sentidos. Aqui, falo no literal. Sempre me questiono se numa dessas visitas não vou me deparar com minhas próprias sobras, ali prontas para serem manipuladas por pessoas invisíveis para a maioria da sociedade. Terminada minha obrigação, tento, como de costume, puxar algum assunto. Pergunto se
alguém tem outro trabalho. Todos sinalizam, com grande desconfiança, que não – o que o “fiscal” está querendo com uma pergunta dessas? Comento então: “quer dizer que é sair daqui, ir pra casa, ligar a tevê e descansar?”. O olhar de alguns – das mulheres, em especial – sinalizam um sorriso amarelo por trás das máscaras, como a questionar “o que esse branquelo que deve ganhar o todinho na cama de manhã entende da vida?”, eu prossigo: “invejo vocês, porque eu moro sozinho, e depois do trabalho preciso limpar a casa, pôr roupa pra lavar, preparar o almoço do dia seguinte…”. O suspiro é uníssono: “Ah, sim, isso eu também tenho que fazer”. Reitero que perguntei se tinham outro trabalho e não outra fonte de renda. Um homem se empolga em contar da rotina, sair das oito horas de labuta pesada para lavar louça, dar um jeito na casa, preparar janta e almoço, usar o fim de semana para a faxina pesada e lavar a roupa. Alguém tira sarro: “cadê a mulher? Virou gay que tem que fazer isso?”. O homem desconversa, eu sem conseguir esboçar uma boa reação (reconheço que não tenho raciocínio rápido, e nessas situações isso faz muita diferença), o máximo que consigo falar é “está certo ele, mulherada de hoje quer homem parceiro, não um cara folgado”. As mulheres, como é comum nessa cooperativa, ficam em silêncio. Uma se arrisca a falar – baixinho – que usa o sábado para afazeres, e que à noite ou no domingo se reúne com a família, para se divertir – e ressalta, como se cometesse pecado: “mas é só de vez em quando”. Um outro rapaz também vem me contar da sua rotina, que ele não precisa trabalhar em casa: sua mãe e seu irmão dão conta, e ele então usa as noites para ir ao culto e os fins de semana para curso de informática. Noto a empolgação em contar para alguém “importante” sua rotina, mesmo eu repetindo em quase todas as visitas que sou um “zé ruela” sem poder nenhum – o que também é mentira da minha parte: sou branco, classe média, falo difícil, representante oficial do Estado; a polícia nunca me parou na rua para averiguação. No caminho da volta, lembro que ir para meus avós era uma das raras ocasiões em que eu pegava táxi – o ônibus vindo de Pato Branco chegava às três da manhã, não era o caso de esperar até às seis para pegar o ônibus urbano e encarar mais uma hora de viagem. Junto com a nostalgia de meus avós, me bate também uma melancolia. Penso no Haiti, penso em carências. O valor do material reciclado, por mais que tenha tido uma baixa, ainda está bom, e permite a essas pessoas ganharem mais do que em muitos empregos “visíveis”; ainda assim, no silêncio da maioria daquelas mulheres, no falar baixo das poucas que se arriscam a dizer algo, no contar da rotina de homens que em outra ocasião já me justificaram que seu emprego é um “emprego normal”, como a se defender de antemão de qualquer juízo de valor que eu pudesse fazer, são gritantes as carências ali presentes: de serem vistos, de serem ouvidos, de serem reconhecidos não só como cidadãos, também como pessoas.
21 de julho de 2021

Redação

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