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Simulacro da sinceridade: o segredo do Bonzo, por Sr. Semana

Simulacro da sinceridade: o segredo do Bonzo

por Sr. Semana

“Se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente” (Machado de Assis, “O Segredo do Bonzo”).

Paradoxalmente, apesar de uma média diária de 3,1 declarações falsas ou distorcidas,[1] a sinceridade é a virtude principal, talvez única, que críticos e fãs atribuem ao presidente Bonzo do Brasil. A sinceridade foi alçada ao cume das virtudes políticas em decorrência de longa hipocrisia por parte de muitos políticos, às vezes desmascarada por operações judiciais e policiais. As operações foram transformadas em grandes espetáculos televisivos durante o segundo governo Dilma e o início do governo Temer (até o final da gestão do PGR Rodrigo Janot). Um caso exemplar foi o de um deputado federal da atual legislatura, que por 30 anos se apresentou como bom moço, tendo sido presidente da Câmara, governador, senador e candidato à presidência da república, sempre exibindo uma imagem jovial de político educado, bem vestido, de boas maneiras, até ser exposto publicamente solicitando, em diálogo com linguajar que jamais manteria frente as câmeras, recursos vultuosos a um grande empresário.[2] Bonzo conseguiu aparecer para parcela significativa da população como contraponto à hipocrisia da classe política nacional. Sua maior virtude seria a de ser um político sincero, que diz e faz o que genuinamente pensa. Para isto exibe na arena pública uma imagem contrária à do bom moço: faz piadas grosserias, usa vocabulário de baixo calão, veste-se de forma inapropriada para o decoro do cargo, improvisa discursos agressivos, e expressa livremente preconceitos arraigados das elites econômicas que até então os mantinham escondidos, as vezes até de amigos, familiares, quiçá de si mesmos, por contrariarem padrões comportamentais civilizados. Embora talvez calculada, esta é a parte sincera do comportamento do presidente: a expressão de instintos antissociais característicos da violenta sociedade brasileira que nos últimos anos estavam um tanto sufocados pela voga do politicamente correto. Entram aí desde piadas racistas e sexistas até manifestações violentas de ódio contra petistas[3] e contra quem denuncia um outro simulacro, o da honestidade.[4]

Entretanto, parece simulada boa parte da “sinceridade” exibida pela qual busca mostrar-se pessoa simples do povo e cristão fervoroso. Se já é inverossímil um apaixonado pelo futebol torcer por vários times em diferentes estados, o que dizer de um torcedor que veste camisa do Atlético Mineiro e sete meses depois a do Cruzeiro?[5] Ou de um cristão que se diz católico,[6] mas que foi batizado pelo pastor Everaldo no Rio Jordão no dia (mera coincidência?) do impeachment da presidenta Dilma?[7]

A sinceridade é em parte simulada e em parte seletiva. Expressa instintos antissociais que sempre existiram nas classes altas, mas não os que poderiam trazer prejuízos políticos. Não é um Justo Veríssimo, personagem político de Chico Anísio, cujos bordões eram “quero que pobre se exploda” e “quero é me arrumar”. Embora goste de explosões, o discurso de ódio não é direcionado aos pobres, que constituem a grande maioria dos votantes, mas aos críticos e principalmente aos adversários políticos. Também jamais diz que o que quer na política é se arrumar, embora não tenha feito outra coisa ao longo dos seus muitos mandatos de deputado federal.

Talvez o maior exemplo de simulação de sinceridade seja o discurso e a prática anticientífica durante a pandemia. Na aparência, é o discurso sincero do ignorante que descrê do que não pode ver com os próprios olhos, desconhecendo ou negando a validade da ciência, ou o do crente que vê a pandemia como punição divina dos ímpios. Ao invés de espontâneo, o obscurantismo parece atender a um cálculo político: o isolamento social recomendado pelos sanitaristas salvaria vidas (principalmente de idosos), mas agravaria a crise econômica que poderia comprometer a reeleição em 2022. Sem o isolamento, ainda segundo o cálculo, a economia seria menos prejudicada e logo o país alcançaria a imunidade de rebanho. O cálculo, além de profundamente desumano, ignorou princípios básicos da economia, da infectologia e da saúde pública. Embora o desastre de uma realidade cada vez mais inconveniente apareça com força, os simulacros da sinceridade e da honestidade, construídos e reforçados em redes sociais desde a campanha de 2018, ainda conseguem formar a opinião que mantém fiel uma parcela da população. Como dizia o Bonzo, “a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente”.

[1] “Em 751 dias como presidente, Bolsonaro deu 2334 declarações falsas ou distorcidas”, https://www.aosfatos.org/todas-as-declarações-de-bolsonaro/, atualizado em 21/01/2021.

[2] https://g1.globo.com/politica/noticia/audio-aecio-e-joesley-batista-acertam-pagamento-de-r-2-milhoes.ghtml

[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/bolsonaro-fez-referencia-a-area-de-desova-de-mortos-pela-ditadura.shtml

[4] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/01/4903005-bolsonaro-diz-que-leite-condensado-e-para—-enfiar-no-rabo-da-imprensa.html

[5] https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/atletico-mg/2020/05/10/noticia_atletico_mg,3847164/presidente-bolsonaro-usa-camisa-do-atletico-em-encontro-com-deputado.shtml; https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/12/19/interna_politica,1222409/em-entrevista-para-o-filho-bolsonaro-aparece-com-camisa-do-cruzeiro.shtml

[6] https://odocumento.com.br/bolsonaro-reforca-fim-do-isolamento-social-se-declara-catolico-romano-e-pede-dia-de-jejum-ao-povo-brasileiro/

[7] https://extra.globo.com/noticias/brasil/enquanto-votacao-do-impeachment-acontecia-bolsonaro-era-batizado-em-israel-19287802.html

Redação

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